ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

26 de janeiro de 2023 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Proteção das pessoas singulares no que respeita ao tratamento de dados pessoais — Diretiva (UE) 2016/680 — Artigo 4.o, n.o 1, alíneas a) a c) — Princípios relativos ao tratamento de dados pessoais — Limitação das finalidades — Minimização dos dados — Artigo 6.o, alínea a) — Distinção clara entre os dados pessoais de diferentes categorias de titulares de dados — Artigo 8.o — Licitude do tratamento — Artigo 10.o — Transposição — Tratamento de dados biométricos e de dados genéticos — Conceito de “tratamento autorizado pelo direito de um Estado‑Membro” — Conceito de “estrita necessidade” — Poder de apreciação — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigos 7.o, 8.o, 47.o, 48.o e 52.o — Direito a uma tutela jurisdicional efetiva — Presunção de inocência — Restrição — Infração dolosa objeto de ação penal ex officio — Arguidos — Recolha de dados fotográficos e dactiloscópicos para efeitos do seu registo e recolha de uma amostra biológica para a elaboração de um perfil ADN — Procedimento de execução coerciva da recolha — Caráter sistemático da recolha»

No processo C‑205/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial, Bulgária), por Decisão de 31 de março de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 31 de março de 2021, no processo penal contra

V.S.,

sendo intervenientes:

Ministerstvo na vatreshnite raboti, Glavna direktsia za borba s organiziranata prestapnost,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: E. Regan, presidente de secção, D. Gratsias (relator), M. Ilešič, I. Jarukaitis e Z. Csehi, juízes,

advogado‑geral: G. Pitruzzella,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação do Governo búlgaro, por M. Georgieva e T. Mitova, na qualidade de agentes,

em representação do Governo francês, por R. Bénard, A.‑L. Desjonquères, D. Dubois e T. Stéhelin, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por H. Kranenborg, M. Wasmeier e I. Zaloguin, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 30 de junho de 2022,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 4.o, n.o 1, alíneas a) e c), do artigo 6.o, alínea a), e dos artigos 8.o e 10.o da Diretiva (UE) 2016/680 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais pelas autoridades competentes para efeitos de prevenção, investigação, deteção ou repressão de infrações penais ou execução de sanções penais, e à livre circulação desses dados, e que revoga a Decisão‑Quadro 2008/977/JAI do Conselho (JO 2016, L 119, p. 89), e dos artigos 3.o, 8.o, 48.o e 52.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo penal instaurado contra V.S., que, na sequência da sua constituição como arguida, recusou a recolha pela polícia dos seus dados biométricos e genéticos para efeitos do seu registo.

Quadro jurídico

Direito da União

RGPD

3

O considerando 19 do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados) (JO 2016, L 119, p. 1; a seguir «RGPD»), enuncia:

«A proteção das pessoas singulares em matéria de tratamento de dados pessoais pelas autoridades competentes para efeitos de prevenção, investigação, deteção e repressão de infrações penais ou da execução de sanções penais, incluindo a salvaguarda e a prevenção de ameaças à segurança pública, e de livre circulação desses dados, é objeto de um ato jurídico da União [Europeia] específico. O presente regulamento não deverá, por isso, ser aplicável às atividades de tratamento para esses efeitos. […]»

4

O artigo 2.o do RGPD, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação material», dispõe, nos seus n.os 1 e 2:

«1.   O presente regulamento aplica‑se ao tratamento de dados pessoais por meios total ou parcialmente automatizados, bem como ao tratamento por meios não automatizados de dados pessoais contidos em ficheiros ou a eles destinados.

2.   O presente regulamento não se aplica ao tratamento de dados pessoais:

a)

Efetuado no exercício de atividades não sujeitas à aplicação do direito da União;

[…]

d)

Efetuado pelas autoridades competentes para efeitos de prevenção, investigação, deteção e repressão de infrações penais ou da execução de sanções penais, incluindo a salvaguarda e a prevenção de ameaças à segurança pública.»

5

O artigo 9.o do RGPD, sob a epígrafe «Tratamento de categorias especiais de dados pessoais», prevê, nos seus n.os 1, 2 e 4:

«1.   É proibido o tratamento de dados pessoais que revelem a origem racial ou étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, ou a filiação sindical, bem como o tratamento de dados genéticos, dados biométricos para identificar uma pessoa de forma inequívoca, dados relativos à saúde ou dados relativos à vida sexual ou orientação sexual de uma pessoa.

2.   O disposto no n.o 1 não se aplica se se verificar um dos seguintes casos:

a)

Se o titular dos dados tiver dado o seu consentimento explícito para o tratamento desses dados pessoais para uma ou mais finalidades específicas, […]

b)

Se o tratamento for necessário para efeitos do cumprimento de obrigações e do exercício de direitos específicos do responsável pelo tratamento ou do titular dos dados em matéria de legislação laboral, de segurança social e de proteção social, […]

c)

Se o tratamento for necessário para proteger os interesses vitais do titular dos dados ou de outra pessoa singular, […]

d)

Se o tratamento for efetuado, no âmbito das suas atividades legítimas e mediante garantias adequadas, por uma fundação, associação ou qualquer outro organismo sem fins lucrativos e que prossiga fins políticos, filosóficos, religiosos ou sindicais, […]

e)

Se o tratamento se referir a dados pessoais que tenham sido manifestamente tornados públicos pelo seu titular;

f)

Se o tratamento for necessário à declaração, ao exercício ou à defesa de um direito num processo judicial ou sempre que os tribunais atuem no exercício da sua função jurisdicional;

g)

Se o tratamento for necessário por motivos de interesse público importante, com base no direito da União ou de um Estado‑Membro, que deve ser proporcional ao objetivo visado, respeitar a essência do direito à proteção dos dados pessoais e prever medidas adequadas e específicas que salvaguardem os direitos fundamentais e os interesses do titular dos dados;

h)

Se o tratamento for necessário para efeitos de medicina preventiva ou do trabalho, para a avaliação da capacidade de trabalho do empregado, o diagnóstico médico, a prestação de cuidados ou tratamentos de saúde ou de ação social ou a gestão de sistemas e serviços de saúde ou de ação social […]

i)

Se o tratamento for necessário por motivos de interesse público no domínio da saúde pública, tais como a proteção contra ameaças transfronteiriças graves para a saúde ou para assegurar um elevado nível de qualidade e de segurança dos cuidados de saúde e dos medicamentos ou dispositivos médicos, com base no direito da União ou dos Estados‑Membros que preveja medidas adequadas e específicas que salvaguardem os direitos e liberdades do titular dos dados, em particular o sigilo profissional;

j)

Se o tratamento for necessário para fins de arquivo de interesse público, para fins de investigação científica ou histórica ou para fins estatísticos […]

[…]

4.   Os Estados‑Membros podem manter ou impor novas condições, incluindo limitações, no que respeita ao tratamento de dados genéticos, dados biométricos ou dados relativos à saúde.»

Diretiva 2016/680

6

Os considerandos 9 a 12, 14, 26, 27, 31 e 37 da Diretiva 2016/680 enunciam:

«(9)

[…] [O RGPD] estabelece regras gerais para proteger as pessoas singulares relativamente ao tratamento de dados pessoais e assegurar a livre circulação de dados pessoais na União.

(10)

Na Declaração 21 sobre a proteção de dados pessoais no domínio da cooperação judiciária em matéria penal e da cooperação policial, anexada à Ata Final da Conferência Intergovernamental que adotou o Tratado de Lisboa, a conferência reconheceu que, atendendo à especificidade dos domínios em causa, poderão ser necessárias disposições específicas sobre proteção de dados pessoais e sobre a livre circulação dos dados pessoais, nos domínios da cooperação judiciária em matéria penal e da cooperação policial, com base no artigo 16.o [TFUE].

(11)

Por conseguinte, esses domínios deverão ser objeto de uma diretiva que estabeleça regras específicas relativas à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais pelas autoridades competentes para efeitos de prevenção, investigação, deteção ou repressão de infrações penais ou execução de sanções penais, incluindo a salvaguarda e a prevenção de ameaças à segurança pública, no respeito da natureza específica dessas atividades. […]

(12)

As funções de polícia ou de outras autoridades de aplicação da lei centram‑se principalmente na prevenção, investigação, deteção ou repressão de infrações penais, incluindo as atividades policiais sem conhecimento prévio de que um incidente constitui ou não uma infração penal. […] Os Estados‑Membros podem atribuir às autoridades competentes outras funções que não sejam necessariamente executadas para efeitos de prevenção, investigação, deteção ou repressão de infrações penais, nomeadamente a salvaguarda e a prevenção de ameaças à segurança pública, de modo que o tratamento dos dados pessoais para esses outros efeitos, na medida em que se insira na esfera do direito da União, seja abrangido pelo âmbito de aplicação do [RGPD].

[…]

(14)

Uma vez que a presente diretiva não deverá aplicar‑se ao tratamento de dados pessoais efetuado no exercício de atividades não sujeitas ao direito da União, não deverão ser consideradas atividades abrangidas pela presente diretiva as atividades relacionadas com a segurança nacional e as atividades das agências ou unidades que se dedicam a questões de segurança nacional e ao tratamento de dados pessoais pelos Estados‑Membros no exercício de atividades inseridas no âmbito de aplicação do título V, capítulo 2, do Tratado [UE].

[…]

(26)

[…] Os dados pessoais deverão ser adequados e relevantes para os efeitos para os quais são tratados. É especialmente necessário garantir que os dados pessoais recolhidos não sejam excessivos nem conservados durante mais tempo do que o necessário para os efeitos para os quais são tratados. Os dados pessoais só deverão ser tratados se a finalidade do tratamento não puder ser atingida de forma razoável por outros meios. […]

(27)

Para efeitos de prevenção, investigação ou repressão de infrações penais, é necessário que as autoridades competentes tratem os dados pessoais, recolhidos no contexto da prevenção, investigação, deteção ou repressão de infrações penais específicas para além desse contexto, a fim de obter uma melhor compreensão das atividades criminais e de estabelecer ligações entre as diferentes infrações penais detetadas.

[…]

(31)

O tratamento de dados pessoais nos domínios da cooperação judiciária em matéria penal e da cooperação policial implica necessariamente o tratamento de dados pessoais relativos a categorias diferentes de titulares de dados. Importa, portanto, estabelecer, se aplicável e tanto quanto possível, uma clara distinção entre dados pessoais de diferentes categorias de titulares de dados, tais como suspeitos, pessoas condenadas por um crime, vítimas e terceiros, designadamente testemunhas, pessoas que detenham informações ou contactos úteis, e os cúmplices de pessoas suspeitas ou condenadas. Tal não deverá impedir a aplicação do direito à presunção de inocência, tal como garantido pela Carta e pela [Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950], de acordo com a interpretação da jurisprudência do Tribunal de Justiça e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, respetivamente.

[…]

(37)

Os dados pessoais que sejam, pela sua natureza, especialmente sensíveis do ponto de vista dos direitos e liberdades fundamentais, merecem uma proteção especial, dado que o contexto do tratamento desses dados pode implicar riscos significativos para os direitos e liberdades fundamentais. […]»

7

O artigo 1.o desta diretiva, sob a epígrafe «Objeto e objetivos», dispõe, nos seus n.os 1 e 2:

«1.   A presente diretiva estabelece as regras relativas à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais pelas autoridades competentes para efeitos de prevenção, investigação, deteção ou repressão de infrações penais ou execução de sanções penais, incluindo a salvaguarda e prevenção de ameaças à segurança pública.

2.   Nos termos da presente diretiva, os Estados‑Membros asseguram:

a)

A proteção dos direitos e das liberdades fundamentais das pessoas singulares e, em especial, o seu direito à proteção dos dados pessoais; […]

b)

Que o intercâmbio de dados pessoais entre autoridades competentes na União, caso seja previsto pelo direito da União ou do Estado‑Membro, não seja limitado nem proibido por razões relacionadas com a proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais.»

8

O artigo 2.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação», prevê, nos seus n.os 1 e 3:

«1.   A presente diretiva aplica‑se ao tratamento de dados pessoais pelas autoridades competentes para os efeitos estabelecidos no artigo 1.o, n.o 1.

[…]

3.   A presente diretiva não se aplica ao tratamento de dados pessoais:

a)

Efetuado no exercício de atividades não sujeitas à aplicação do direito da União;

[…]»

9

Nos termos do artigo 3.o da mesma diretiva:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

1.

“Dados pessoais”, informações relativas a uma pessoa singular identificada ou identificável (“titular dos dados”); é considerada identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, direta ou indiretamente, em especial por referência a um identificador como, por exemplo, um nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores em linha ou um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa singular;

2.

“Tratamento”, uma operação ou um conjunto de operações efetuadas sobre dados pessoais ou sobre conjuntos de dados pessoais, por meios automatizados ou não automatizados, tais como a recolha, o registo, a organização, a estruturação, a conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a utilização, a divulgação por transmissão, por difusão ou por qualquer outra forma de disponibilização, a comparação ou interconexão, a limitação, o apagamento ou a destruição;

[…]

7.

“Autoridade competente”:

a)

Uma autoridade pública competente para efeitos de prevenção, investigação, deteção ou repressão de infrações penais ou execução de sanções penais, incluindo a salvaguarda e a prevenção de ameaças à segurança pública; […]

[…]

12.

“Dados genéticos”, dados pessoais, relativos às características genéticas, hereditárias ou adquiridas, de uma pessoa singular, que dão informações únicas sobre a sua fisiologia ou sobre a sua saúde e que resultam, designadamente, da análise de uma amostra biológica da pessoa singular em causa;

13.

“Dados biométricos”, dados pessoais resultantes de um tratamento técnico específico, relativos às características físicas, fisiológicas ou comportamentais de uma pessoa singular, que permitem ou confirmam a sua identificação única, tais como imagens faciais ou dados dactiloscópicos;

[…]»

10

O artigo 4.o da Diretiva 2016/680, sob a epígrafe «Princípios relativos ao tratamento de dados pessoais», dispõe, no seu n.o 1:

«Os Estados‑Membros preveem que os dados pessoais sejam:

a)

Objeto de um tratamento lícito e leal;

b)

Recolhidos para finalidades determinadas, explícitas e legítimas, e não tratados de uma forma incompatível com essas finalidades;

c)

Adequados, pertinentes e limitados ao mínimo necessário relativamente às finalidades para as quais são tratados;

[…]»

11

O artigo 6.o desta diretiva, sob a epígrafe «Distinção entre diferentes categorias de titulares de dados», prevê:

«Os Estados‑Membros preveem que o responsável pelo tratamento estabeleça, se aplicável, e na medida do possível, uma distinção clara entre os dados pessoais de diferentes categorias de titulares de dados, tais como:

a)

Pessoas relativamente às quais existem motivos fundados para crer que cometeram ou estão prestes a cometer uma infração penal;

b)

Pessoas condenadas por uma infração penal;

c)

Vítimas de uma infração penal ou pessoas relativamente às quais certos factos levam a crer que possam vir a ser vítimas de uma infração penal; e

d)

Terceiros envolvidos numa infração penal, tais como pessoas que possam ser chamadas a testemunhar em investigações penais relacionadas com infrações penais ou em processos penais subsequentes, pessoas que possam fornecer informações sobre infrações penais, ou contactos ou associados de uma das pessoas a que se referem as alíneas a) e b).»

12

O artigo 8.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Licitude do tratamento», enuncia:

«1.   Os Estados‑Membros preveem que o tratamento só seja lícito se e na medida em que for necessário para o exercício de uma atribuição pela autoridade competente para os efeitos previstos no artigo 1.o, n.o 1, e tiver por base o direito da União ou de um Estado‑Membro.

2.   O direito de um Estado‑Membro que rege o tratamento no âmbito da presente diretiva especifica pelo menos os objetivos do tratamento, os dados pessoais a tratar e as finalidades do tratamento.»

13

O artigo 9.o da mesma diretiva, sob a epígrafe «Condições específicas do tratamento», dispõe, nos seus n.os 1 e 2:

«1.   Os dados pessoais recolhidos pelas autoridades competentes para os fins do artigo 1.o, n.o 1, não podem ser tratados para fins diferentes dos previstos no artigo 1.o, n.o 1, a não ser que esse tratamento seja autorizado pelo direito da União ou de um Estado‑Membro. Caso os dados pessoais sejam tratados para esses outros fins, é aplicável o [RGPD], salvo se o tratamento for efetuado no âmbito de uma atividade não sujeita à aplicação do direito da União.

2.   Caso o direito dos Estados‑Membros confie às autoridades competentes o exercício de atribuições diferentes das exercidas para os fins do artigo 1.o, n.o 1, o [RGPD] é aplicável ao tratamento para esses fins, inclusive para fins de arquivo de interesse público, para fins de investigação científica ou histórica ou para fins estatísticos, salvo se o tratamento for efetuado no âmbito de uma atividade não sujeita à aplicação do direito da União.»

14

Nos termos do artigo 10.o da Diretiva 2016/680:

«O tratamento de dados pessoais que revelem a origem racial ou étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, a filiação sindical, o tratamento de dados genéticos, dados biométricos destinados a identificar uma pessoa singular de forma inequívoca, dados relativos à saúde ou dados relativos à vida sexual ou à orientação sexual, só é autorizado se for estritamente necessário, se estiver sujeito a garantias adequadas dos direitos e liberdades do titular dos dados, e se:

a)

For autorizado pelo direito da União ou de um Estado‑Membro;

b)

Se destinar a proteger os interesses vitais do titular dos dados ou de outra pessoa singular; ou

c)

Estiver relacionado com dados manifestamente tornados públicos pelo titular dos dados.»

15

O artigo 52.o desta diretiva, sob a epígrafe «Direito de apresentar reclamação a uma autoridade de controlo», enuncia, no seu n.o 1:

«Sem prejuízo de qualquer outra via de recurso administrativo ou judicial, os Estados‑Membros preveem que todos os titulares de dados têm o direito de apresentar reclamação a uma autoridade de controlo única, se o titular dos dados considerar que o tratamento dos dados pessoais que lhe diz respeito viola as disposições adotadas por força da presente diretiva.»

16

O artigo 53.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Direito de intentar ação judicial contra uma autoridade de controlo», dispõe, no seu n.o 1:

«Sem prejuízo de qualquer outra via de recurso administrativo ou extrajudicial, os Estados‑Membros preveem que as pessoas singulares ou coletivas tenham o direito de intentar ação judicial contra qualquer decisão juridicamente vinculativa tomada por uma autoridade de controlo que lhes diga respeito.»

17

Nos termos do artigo 54.o da mesma diretiva, sob a epígrafe «Direito de intentar uma ação judicial contra um responsável pelo tratamento de dados ou um subcontratante»:

«Sem prejuízo de qualquer via de recurso administrativo ou extrajudicial disponível, nomeadamente o direito de apresentar reclamação junto de uma autoridade de controlo nos termos do artigo 52.o, os Estados‑Membros preveem que os titulares dos dados têm o direito de intentar ação judicial se considerarem ter havido violação dos direitos que lhes assistem nos termos das disposições adotadas por força da presente diretiva na sequência de um tratamento dos seus dados pessoais que não cumpra tais disposições.»

18

O artigo 63.o da Diretiva 2016/680, sob a epígrafe «Transposição», dispõe, nos seus n.os 1 e 4:

«1.   Os Estados‑Membros adotam e publicam, até 6 de maio de 2018, as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à presente diretiva. […]

Quando os Estados‑Membros adotarem essas disposições, estas incluem uma referência à presente diretiva ou são acompanhadas dessa referência aquando da sua publicação oficial. As modalidades dessa referência são estabelecidas pelos Estados‑Membros.

[…]

4.   Os Estados‑Membros comunicam à Comissão [Europeia] o texto das principais disposições de direito interno que adotarem no domínio abrangido pela presente diretiva.»

Direito búlgaro

NK

19

De acordo com o artigo 11.o, n.o 2, do Nakazatelen kodeks (Código Penal), na sua versão aplicável ao processo principal (a seguir «NK»), as infrações são dolosas quando o autor tem consciência da natureza do seu ato, ou quando a ocorrência do resultado da infração foi por ele pretendida ou quando a tiver permitido. A grande maioria das infrações previstas no NK é dolosa.

20

Em conformidade com o artigo 255.o do NK, «quem cometer uma fraude à liquidação e ao pagamento de dívidas fiscais com montantes avultados», segundo as modalidades expressamente indicadas na lei, é punido com pena privativa da liberdade de um a seis anos, bem como com multa de 2000 levs búlgaros (BGN) (cerca de 1000 euros).

21

Em conformidade com as disposições conjugadas do artigo 321.o, n.os 2 e 3, e do artigo 94.o, ponto 20, do NK, quem participar numa organização criminosa constituída com o objetivo de enriquecimento para cometer infrações passíveis de sanção superior a 3 anos de «privação de liberdade» incorre numa pena de «privação de liberdade» com uma duração de três a dez anos. É também especificado que essa infração é dolosa e que é objeto de ação penal segundo o direito comum.

NPK

22

O artigo 46.o, n.o 1, e o artigo 80.o do Nakazatelno‑protsesualen kodeks (Código de Processo Penal), na sua versão aplicável ao processo principal (a seguir «NPK»), preveem que as infrações penais são objeto de ação penal ex officio, a saber, que a acusação é da iniciativa do Procurador ou do assistente. Quase todas as infrações previstas no NK são objeto de ação penal ex officio.

23

Nos termos do artigo 219.o, n.o 1, do NPK, «quando estão reunidos elementos de prova suficientes para imputar a uma determinada pessoa a prática de uma infração objeto de ação penal ex officio», esta pessoa é constituída arguida e é disso informada. A pessoa pode ficar sujeita a diversas medidas processuais de coação, ao mesmo tempo que se pode defender, dando explicações ou apresentando elementos de prova.

ZZLD

24

Nos termos do artigo 51.o da zakon za zashtita na lichnite danni (Lei relativa à Proteção de Dados Pessoais) (DV n.o 1, de 4 de janeiro de 2002; a seguir «ZZLD»), o tratamento de dados genéticos e de dados biométricos para identificar uma pessoa singular de forma inequívoca só é autorizado em caso de estrita necessidade se os direitos e liberdades dos titulares dos dados estiverem adequadamente garantidos e se tiver sido previsto no direito da União ou no direito búlgaro. Se o tratamento não estiver previsto no direito da União ou no direito búlgaro, devem estar em causa interesses vitais para a sua autorização, ou os dados devem ter sido tornados públicos pelo titular dos dados.

ZMVR

25

De acordo com o artigo 6.o da zakon sa Ministerstvo na vatreshnite raboti (Lei relativa ao Ministério da Administração Interna) (DV n.o 53, de 27 de junho de 2014; a seguir «ZMVR»), o Ministério da Administração Interna exerce certas atividades principais, entre as quais uma atividade de investigação operacional e de vigilância, atividades de inquérito relativas às infrações e uma atividade de informação.

26

Ao abrigo do artigo 18.o, n.o 1, da ZMVR, a atividade de informação consiste em recolher, tratar, arquivar, conservar e utilizar as informações. De acordo com o artigo 20.o, n.o 1, desta lei, a atividade de informação baseia‑se em informações que são reproduzidas ou sujeitas à reprodução em suportes de gravação, elaborados pelas autoridades do Ministério da Administração Interna.

27

O artigo 25.o, n.o 1, da ZMVR habilita o Ministério da Administração Interna a tratar dados pessoais para a execução das suas atividades. Tendo em conta o artigo 6.o da ZMVR, daí decorre que o Ministério da Administração Interna trata os dados pessoais com vista a realizar as suas atividades principais, a saber, a sua atividade de investigação operacional, de vigilância e de inquérito relativa às infrações.

28

O artigo 25.o, n.o 3, da ZMVR prevê que o tratamento de dados pessoais é efetuado ao abrigo desta lei, em conformidade com o RGPD e a ZZLD.

29

Ao abrigo do artigo 25.o‑A, n.o 1, da ZMVR, o tratamento de dados pessoais que contenham dados genéticos e dados biométricos para identificar uma pessoa singular de forma inequívoca só é permitido nas condições previstas no artigo 9.o do RGPD ou no artigo 51.o da ZZLD.

30

De acordo com o artigo 27.o da ZMVR, os dados registados pela polícia ao abrigo do artigo 68.o desta lei são apenas utilizados no âmbito da proteção da segurança nacional, da luta contra a criminalidade e da manutenção da ordem pública.

31

O artigo 68.o da ZMVR tem a seguinte redação:

«1.

As autoridades policiais procedem ao registo policial das pessoas constituídas arguidas pela prática de uma infração dolosa objeto de ação penal ex officio. […]

2.

O registo policial constitui uma categoria de tratamento de dados pessoais das pessoas referidas no n.o 1, a efetuar nos termos da presente lei.

3.

Para efeitos do registo policial, as autoridades policiais:

1)

Recolhem os dados pessoais referidos no artigo 18.o da [zakon za balgarskite lichni dokumenti (Lei relativa aos Documentos de Identificação Búlgaros)];

2)

Procedem à recolha das impressões digitais das pessoas e da respetiva fotografia;

3)

Recolhem amostras para a elaboração de um perfil ADN das mesmas.

4.

Os procedimentos previstos no n.o 3, ponto 1, não exigem o consentimento da pessoa.

5.

As pessoas têm o dever de colaborar e de não dificultar nem impedir que as autoridades policiais efetuem os procedimentos referidos no n.o 3. Caso se recusem, os procedimentos referidos no n.o 3, pontos 2 e 3, são levados a efeito coercivamente, mediante autorização judicial emitida pelo órgão jurisdicional de primeira instância competente para apreciar a infração que é objeto de ação penal ex officio, pela qual a pessoa foi constituída arguida.

[…]»

NRISPR

32

O naredba za reda za izvarshvane i snemane na politseyska registratsia (Regulamento que Estabelece as Modalidades de Execução do Registo Policial) (DV n.o 90, de 31 de outubro de 2014), na sua versão aplicável ao processo principal (a seguir «NRISPR»), adotado com base no artigo 68.o, n.o 7, da ZMVR, especifica as modalidades de aplicação do registo policial previsto neste artigo.

33

De acordo com o artigo 2.o do NRISPR, os objetivos do registo policial são a proteção da segurança nacional, a luta contra a criminalidade e a manutenção da ordem pública.

34

Ao abrigo do artigo 11.o, n.o 2, do NRISPR, é entregue à pessoa que deve ser objeto de registo policial uma declaração a preencher na qual pode manifestar o seu acordo ou o seu desacordo quanto às medidas fotográficas, dactiloscópicas e de amostras de ADN. Por força do n.o 4 do artigo 11.o do NRISPR, no caso de desacordo dessa pessoa, a polícia apresenta um requerimento ao tribunal competente para que seja autorizada a execução coerciva dessas medidas.

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

35

As autoridades búlgaras instauraram um processo penal por fraude relativa à liquidação e ao pagamento de dívidas fiscais contra duas sociedades comerciais, com fundamento no artigo 255.o do NK.

36

Por Despacho adotado em 1 de março de 2021, ao abrigo do artigo 219.o do NPK, e notificado a V.S. em 15 de março de 2021, esta foi constituída arguida. Era‑lhe imputado, com base no n.o 3, ponto 2, do artigo 321.o do NK, lido em conjugação com o n.o 2 deste artigo, a participação, com outras três pessoas, numa organização criminosa, constituída com o objetivo de enriquecimento, com vista a cometer de maneira concertada no território búlgaro delitos a título do artigo 255.o do NK.

37

Na sequência da notificação do referido despacho de constituição de arguido, V.S. foi convidada a submeter‑se ao registo policial. Preencheu um formulário de declaração no qual indicou que tinha sido informada de que existia uma base legal que permitia proceder a esse registo e que recusava sujeitar‑se à recolha dos dados dactiloscópicos e fotográficos que lhe diziam respeito para efeitos do seu registo e a uma amostra para a elaboração do seu perfil ADN. A polícia não procedeu a essa recolha e apresentou um requerimento no órgão jurisdicional de reenvio.

38

O requerimento das autoridades policiais dirigido ao órgão jurisdicional de reenvio indica que foram reunidas provas suficientes da culpabilidade dos arguidos no âmbito do processo penal em causa, incluindo de V.S. Nele se precisa que V.S. é oficialmente acusada de ter cometido uma infração prevista no ponto 2 do n.o 3 do artigo 321.o do NK, lido em conjugação com o n.o 2 deste artigo, e que se recusou submeter à recolha dos dados dactiloscópicos e fotográficos que lhe dizem respeito para efeitos do seu registo e a uma amostra para a elaboração do seu perfil ADN, sendo referida a base legal da recolha desses dados. Por último, neste requerimento, pede‑se ao órgão jurisdicional de reenvio que autorize proceder à execução coerciva dessa recolha. Só as cópias do despacho de constituição de arguido de V.S. e da declaração em que recusa prestar o seu consentimento para o registo policial foram anexadas ao referido requerimento.

39

O órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à compatibilidade com o direito da União das disposições legislativas e regulamentares do direito búlgaro aplicáveis ao registo policial.

40

Em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que as disposições do artigo 25.o, n.o 3, e do artigo 25.o‑A da ZMVR se referem ao RGPD e não à Diretiva 2016/680. Ora, este salienta que, embora, por força do seu artigo 2.o, n.o 2, alínea d), este regulamento não se aplique ao tratamento de dados pessoais efetuado pelos órgãos competentes para efeitos de prevenção, investigação, deteção e repressão de infrações penais, o artigo 1.o, n.o 1, desta diretiva regula este tratamento. Do mesmo modo, o órgão jurisdicional de reenvio observa que o artigo 9.o do referido regulamento proíbe expressamente o tratamento de dados genéticos e biométricos e que a luta contra a criminalidade não figura entre as exceções a esta proibição previstas no n.o 2 deste artigo. Por último, acrescenta que o artigo 51.o da ZZLD não pode, por si só, justificar a admissibilidade de um tratamento de dados biométricos e genéticos, uma vez que esta deve estar prevista no direito da União ou no direito nacional.

41

Tendo em conta estes elementos, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se é possível considerar que, apesar da referência ao artigo 9.o do RGPD, o tratamento de dados genéticos e biométricos para fins penais é admissível em direito nacional, tendo em conta que é claramente autorizado pelo artigo 10.o da Diretiva 2016/680, mesmo que esta não seja mencionada nas disposições aplicáveis da ZMVR.

42

Em segundo lugar, na hipótese de se dever considerar que o artigo 10.o da Diretiva 2016/680 foi corretamente transposto para o direito nacional, ou que existe uma base jurídica válida nesse direito para proceder ao tratamento de dados biométricos e genéticos, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se o requisito previsto no artigo 10.o, alínea a), desta diretiva, segundo o qual esse tratamento deve ser autorizado pelo direito da União ou pelo direito de um Estado‑Membro, se considera preenchido quando existir uma contradição entre as disposições de direito nacional aplicáveis.

43

Com efeito, o órgão jurisdicional de reenvio considera que existe uma contradição entre o artigo 25.o‑A da ZMVR, que, ao referir‑se ao artigo 9.o do RGPD, parece não autorizar a recolha de dados biométricos e genéticos, e o artigo 68.o da ZMVR, que a autoriza indubitavelmente.

44

Em terceiro lugar, por um lado, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que, por força do artigo 219.o, n.o 1, do NPK, é indispensável reunir elementos de prova suficientes da culpabilidade de uma determinada pessoa para que essa pessoa seja constituída arguida. A este respeito, interroga‑se sobre a questão de saber se o critério previsto nesta disposição corresponde ao previsto no artigo 6.o, alínea a), da Diretiva 2016/680, que diz respeito às pessoas relativamente às quais existem «motivos fundados para crer que cometeram […] uma infração». Tende a considerar que, para o tratamento de dados biométricos e genéticos, é indispensável reunir provas mais convincentes do que as que são necessárias, por força do NPK, para que uma pessoa seja constituída arguida, uma vez que esta constituição de arguido serve para informar essa pessoa das suspeitas que recaem sobre ela e da possibilidade de se defender.

45

Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio constata que o artigo 68.o da ZMVR não prevê que, no âmbito do procedimento de execução coerciva do registo policial, deva exercer qualquer fiscalização da existência de motivos fundados, na aceção do artigo 6.o, alínea a), da Diretiva 2016/680. Pelo contrário, por força deste artigo da ZMVR, bastar‑lhe‑ia constatar que a pessoa foi constituída arguida por uma infração dolosa objeto de ação penal ex officio. Assim, não é competente para apreciar se existem provas suficientes ou fundadas para essa constituição de arguido e, de resto, não tem a possibilidade de, na prática, proceder a essa apreciação, na medida em que não tem acesso aos autos, mas apenas às cópias do despacho de constituição de arguido e da declaração de recusa da recolha de dados pela polícia. Por conseguinte, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se, nestas condições, a pessoa que recusou pôr à disposição da polícia os dados fotográficos, dactiloscópicos e genéticos que lhe dizem respeito beneficia da tutela jurisdicional efetiva e do respeito pelo direito à presunção de inocência, garantidos, respetivamente, pelos artigos 47.o e 48.o da Carta.

46

Em quarto lugar, o órgão jurisdicional de reenvio deduz do artigo 4.o, n.o 1, alíneas b) e c), do artigo 8.o, n.os 1 e 2, e do artigo 10.o da Diretiva 2016/680 que o direito nacional deve conferir às autoridades competentes um certo poder de apreciação quando estas procedem à recolha de dados biométricos e genéticos, através da recolha de fotografias e de impressões digitais e de amostras de ADN. Em seu entender, esse poder de apreciação deve incidir quer sobre a questão de saber se essa recolha deve ter lugar quer sobre a questão de saber se deve abranger todas as categorias de dados acima mencionadas. Por último, considera que se deve deduzir do requisito de «estrita necessidade», enunciado no artigo 10.o desta diretiva, que a autorização de recolha desses dados só pode ocorrer se existir uma fundamentação adequada da sua necessidade.

47

O órgão jurisdicional de reenvio salienta que, no entanto, o registo policial se aplica imperativamente a todos as pessoas constituídas arguidas por infrações dolosas objeto de ação penal ex officio e às três categorias de dados pessoais referidas nesse artigo, ou seja, as fotografias, as impressões digitais e a amostra de ADN.

48

Além disso, salienta que só os objetivos desse tratamento de dados pessoais são mencionados na ZMVR, a saber, exercer uma atividade de investigação, incluindo com vista à proteção da segurança nacional, à luta contra a criminalidade e à manutenção da ordem pública. Em contrapartida, a legislação nacional não exige que seja verificada a necessidade concreta de proceder à recolha de dados biométricos e genéticos e que seja apreciado se basta o conjunto desses dados ou apenas uma parte deles.

49

Por conseguinte, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se a condição prevista no direito nacional para autorizar o registo policial, segundo a qual o titular dos dados deve ter sido constituído arguido por uma infração dolosa objeto de ação penal ex officio, é suficiente para cumprir os requisitos do artigo 4.o, n.o 1, alíneas a) e c), do artigo 8.o, n.os 1 e 2, e do artigo 10.o da Diretiva 2016/680.

50

Nestas condições, o Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial, Bulgária) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

O artigo 10.o da Diretiva 2016/680 foi devidamente transposto para a lei nacional — artigo 25.o, n.o 3, e artigo 25.o‑A da [ZMVR] — mediante uma referência à disposição semelhante do artigo 9.o do [RGPD]?

2)

O requisito estabelecido no artigo 10.o, alínea a), da Diretiva 2016/680, conjugado com o artigo 52.o, bem como com os artigos 3.o e 8.o da Carta, segundo o qual uma restrição à integridade e à proteção dos dados pessoais deve ser prevista por lei, está preenchido quando existem disposições nacionais contraditórias relativas à admissibilidade de um tratamento de dados genéticos e biométricos para efeitos de registo policial?

3)

Uma lei nacional — artigo 68.o, n.o 4, da [ZMVR] — que prevê a obrigação do tribunal de ordenar a recolha obrigatória de dados pessoais (recolha de fotografias, de impressões digitais e de amostras para a elaboração de um perfil ADN) é compatível com o artigo 6.o, alínea a), da Diretiva 2016/680, conjugado com o artigo 48.o da Carta, quando uma pessoa [constituída arguida por] uma infração [dolosa objeto de ação penal ex officio] se recusa a cooperar voluntariamente na recolha desses dados pessoais, sem que o tribunal possa avaliar se existem motivos fundados para crer que a pessoa cometeu a infração penal de que é acusada?

4)

Uma lei nacional — artigo 68.o, n.os 1 a 3, da [ZMVR] — que prevê como regra geral a recolha de fotografias, de impressões digitais e de amostras para a elaboração de um perfil ADN de todas as pessoas [constituídas arguidas por] uma infração [dolosa objeto de ação penal ex officio] é compatível com o artigo 10.o, com o artigo 4.o, n.o 1, [alíneas a) e c)], e com o artigo 8.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2016/680?»

51

Por carta de 5 de agosto de 2022, o Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia, Bulgária) informou o Tribunal de Justiça de que, na sequência de uma alteração legislativa que entrou em vigor em 27 de julho de 2022, o Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) foi extinto e de que determinados processos penais pendentes neste último órgão jurisdicional, incluindo o processo principal, foram transferidos a partir dessa data para o Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia).

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira e segunda questões

52

Com a primeira e segunda questões, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio procura, em substância, saber se o artigo 10.o, alínea a), da Diretiva 2016/680, lido à luz dos artigos 3.o, 8.o e 52.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que a recolha de dados biométricos e genéticos pelas autoridades policiais com vista às suas atividades de investigação para efeitos de luta contra a criminalidade e de manutenção da ordem pública é autorizada pelo direito de um Estado‑Membro, na aceção do artigo 10.o, alínea a), da Diretiva 2016/680, quando, por um lado, as disposições nacionais que constituem a base jurídica dessa autorização se referem ao artigo 9.o do RGPD, embora reproduzam o conteúdo do referido artigo 10.o da Diretiva 2016/680, e, por outro, essas disposições nacionais parecem estabelecer requisitos contraditórios no que respeita à admissibilidade de tal recolha.

Quanto à admissibilidade

53

No âmbito das suas observações escritas, a Comissão põe em causa a admissibilidade da primeira e segunda questões, pelo facto de o órgão jurisdicional de reenvio, por um lado, pretender apenas saber se o direito nacional transpôs efetivamente o artigo 10.o da Diretiva 2016/680, sem suscitar dúvidas ou interrogações quanto ao sentido exato deste artigo, e, por outro, não expor as razões que o conduziram a interrogar‑se sobre a interpretação ou a validade das disposições do direito da União em causa, em violação do artigo 94.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

54

A este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões submetidas sejam relativas à interpretação ou à validade de uma regra do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se. Daqui se conclui que as questões submetidas pelos órgãos jurisdicionais nacionais gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou o objeto do litígio no processo principal, se o problema for hipotético ou ainda se o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às referidas questões (Acórdão de 20 de outubro de 2022, Digi, C‑77/21, EU:C:2022:805, n.o 17 e jurisprudência referida).

55

Para este efeito, para que o Tribunal de Justiça possa fornecer uma interpretação do direito da União que seja útil ao juiz nacional, o pedido de decisão prejudicial deve, em conformidade com o artigo 94.o, alínea c), do Regulamento de Processo, conter a exposição das razões que conduziram o órgão jurisdicional de reenvio a interrogar‑se sobre a interpretação ou a validade de certas disposições do direito da União, bem como o nexo que o mesmo estabelece entre essas disposições e a legislação nacional aplicável ao litígio no processo principal (v., neste sentido, Acórdão de 2 de julho de 2015, Gullotta e Farmacia di Gullotta Davide & C., C‑497/12, EU:C:2015:436, n.o 17 e jurisprudência referida).

56

No que respeita à primeira e segunda questões, resulta da decisão de reenvio que, no âmbito do processo principal, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se a condição enunciada no artigo 10.o, alínea a), da Diretiva 2016/680, segundo a qual o tratamento de dados genéticos e biométricos, referidos neste artigo, deve ser autorizado pelo direito da União ou pelo direito de um Estado‑Membro, está cumprida no que respeita ao registo policial em causa nesse processo.

57

Como o órgão jurisdicional de reenvio indica, em substância, nesse pedido, é neste contexto que solicita ao Tribunal de Justiça indicações relativas à interpretação dessa condição. Por um lado, com a primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se esse artigo 10.o pode ser considerado corretamente transposto por uma disposição de direito nacional que se refere unicamente ao artigo 9.o do RGPD, mas cujo teor corresponde ao do referido artigo 10.o Por outro lado, em caso afirmativo, com a segunda questão, pretende saber se a recolha de dados genéticos e biométricos para efeitos do seu registo pela polícia pode ser considerada «autorizad[a] pelo direito […] de um Estado‑Membro», na aceção da alínea a) deste artigo, ou seja, «prevista por lei», na aceção do artigo 52.o, n.o 1, da Carta, quando as disposições do direito nacional que constituem a base jurídica para esse tratamento parecem enunciar regras contraditórias no que diz respeito à admissibilidade desse tratamento.

58

Por conseguinte, o órgão jurisdicional de reenvio identificou claramente, no pedido de decisão prejudicial, as disposições do direito da União aplicáveis, as suas interrogações no que respeita à interpretação deste direito e as razões que o conduziram a submeter ao Tribunal de Justiça a primeira e segunda questões. Além disso, resulta claramente deste pedido que a interpretação das referidas disposições apresenta um nexo com o objeto do processo principal, uma vez que a eventual constatação, pelo órgão jurisdicional de reenvio, face às indicações fornecidas pelo Tribunal de Justiça, de que as disposições de direito nacional em causa não satisfazem a condição enunciada no artigo 10.o, alínea a), da Diretiva 2016/680 é suscetível de o conduzir a indeferir o requerimento das autoridades policiais que lhe foi apresentado, que visa a recolha coerciva de dados biométricos e genéticos de V.S. para efeitos do seu registo.

59

Daí resulta que a primeira e a segunda questões são admissíveis.

Quanto ao mérito

60

A título preliminar, há que observar que, embora a segunda questão vise os artigos 3.o, 8.o e 52.o da Carta, resulta do pedido de decisão prejudicial que as interrogações do órgão jurisdicional de reenvio apenas têm por objeto o preenchimento, pela regulamentação nacional em causa no processo principal, do requisito, previsto no n.o 1 deste último artigo, ao abrigo do qual qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela Carta deve ser prevista por lei. Por conseguinte, o exame da primeira e da segunda questão deve ser efetuado apenas à luz deste artigo 52.o da Carta.

61

Em primeiro lugar, há que salientar que, à luz do considerando 19 do RGPD, bem como dos considerandos 9 a 12 da Diretiva 2016/680, e por força do artigo 2.o, n.o 1, e do artigo 9.o, n.os 1 e 2, desta diretiva, consoante o tratamento de dados pessoais efetuado por uma «autoridade competente», na aceção do artigo 3.o, n.o 7, da mesma, ocorra para efeitos, previstos no seu artigo 1.o, n.o 1, de prevenção, investigação, deteção ou repressão de infrações penais, incluindo a salvaguarda e a prevenção de ameaças à segurança pública, ou para outros efeitos que não os referidos, tal tratamento é suscetível de estar abrangido quer pelo âmbito de aplicação das regras específicas da referida diretiva, quer pelo âmbito de aplicação das regras gerais deste regulamento, à margem das exceções a estes âmbitos de aplicação enumeradas exaustivamente no artigo 2.o, n.o 3, da mesma diretiva, e no artigo 2.o, n.o 2, do referido regulamento.

62

Em especial, há que salientar que o artigo 9.o do RGPD e o artigo 10.o da Diretiva 2016/680 contêm ambos disposições que regulam o tratamento dado a categorias especiais de dados pessoais, consideradas dados sensíveis, incluindo os dados genéticos e biométricos.

63

A este respeito, o artigo 10.o da Diretiva 2016/680 prevê que o tratamento desses dados sensíveis «só é autorizado se for estritamente necessário, se estiver sujeito a garantias adequadas dos direitos e liberdades do titular dos dados» e só em três situações, nomeadamente, por força da alínea a) deste artigo, se esse tratamento for autorizado pelo direito da União ou pelo direito de um Estado‑Membro. Em contrapartida, o n.o 1 do artigo 9.o do RGPD enuncia uma proibição de princípio do tratamento dos referidos dados sensíveis, acompanhada de uma lista de situações, enumeradas no n.o 2 deste artigo, nas quais pode haver uma exceção a esta proibição, lista essa que não menciona uma situação que corresponde à de um tratamento de dados para os efeitos enunciados no artigo 1.o, n.o 1, da referida diretiva e que cumpre o requisito que figura no artigo 10.o, alínea a), da mesma. Daqui resulta que, enquanto um tratamento de dados biométricos e genéticos pelas autoridades competentes para os efeitos abrangidos pela Diretiva 2016/680 é suscetível de ser autorizado desde que, em conformidade com os requisitos estabelecidos no seu artigo 10.o, seja estritamente necessário, enquadrado por garantias adequadas e previsto no direito da União ou no direito de um Estado‑Membro, tal não será necessariamente o caso de um tratamento desses mesmos dados abrangido pelo âmbito de aplicação do RGPD.

64

Em segundo lugar, o alcance do requisito enunciado no artigo 10.o, alínea a), da Diretiva 2016/680, segundo o qual o tratamento de dados pessoais deve ter sido «autorizado pelo direito da União ou de um Estado‑Membro», deve ser determinado à luz do requisito consagrado no artigo 52.o, n.o 1, da Carta, segundo o qual qualquer restrição ao exercício de um direito fundamental deve ser «prevista por lei».

65

A este respeito, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que este requisito implica que a base jurídica que autoriza tal restrição deve definir, de forma clara e precisa, o seu alcance [v., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2020, État luxembourgeois (Direito à ação contra um pedido de informação em matéria fiscal), C‑245/19 e C‑246/19, EU:C:2020:795, n.o 76 e jurisprudência referida].

66

Além disso, decorre da jurisprudência recordada no número anterior do presente acórdão que não pode haver qualquer equívoco quanto às disposições do direito da União ao abrigo das quais o direito nacional pode autorizar um tratamento de dados biométricos e genéticos, como o que está em causa no processo principal, e quanto às condições aplicáveis que enquadram essa autorização. Com efeito, os titulares dos dados e os órgãos jurisdicionais competentes devem estar em posição de determinar com precisão, em especial, as condições em que esse tratamento pode ter lugar e as finalidades que ele pode legalmente satisfazer. Ora, as regras do RGPD e as regras da diretiva aplicáveis a esses requisitos podem ser diferentes.

67

Por conseguinte, embora o legislador nacional tenha a faculdade de prever, no âmbito do mesmo instrumento legislativo, o tratamento de dados pessoais para os efeitos abrangidos pela Diretiva 2016/680 e para outros efeitos abrangidos pelo RGPD, tem, em contrapartida, a obrigação, em conformidade com os requisitos enunciados no número anterior do presente acórdão, de se certificar da inexistência de ambiguidade quanto à aplicabilidade de um ou de outro destes dois atos da União à recolha de dados biométricos e genéticos.

68

Em terceiro lugar, no que respeita às interrogações do órgão jurisdicional de reenvio quanto a uma eventual transposição incorreta da Diretiva 2016/680, importa distinguir entre as disposições de direito nacional que asseguram a transposição desta diretiva, em especial do seu artigo 10.o, e aquelas ao abrigo das quais um tratamento de dados pertencentes às categorias especiais referidas neste artigo, nomeadamente os dados biométricos e genéticos, pode ser autorizado na aceção da alínea a) do artigo 10.o

69

A este respeito, embora, como decorre do seu artigo 63.o, n.o 1, segundo parágrafo, a Diretiva 2016/680 preveja expressamente a obrigação de os Estados‑Membros assegurarem que as disposições necessárias à sua transposição incluam uma referência a esta diretiva ou sejam acompanhadas dessa referência aquando da sua publicação oficial, o que implica, em qualquer caso, a adoção de um ato positivo de transposição da referida diretiva [v., neste sentido, Acórdão de 25 de fevereiro de 2021, Comissão/Espanha (Diretiva dados pessoais — Domínio penal), C‑658/19, EU:C:2021:138, n.o 16 e jurisprudência referida], a mesma diretiva não exige que as disposições de direito nacional que autorizam o tratamento de dados abrangidos pelo seu âmbito de aplicação contenham uma tal referência. Assim, o artigo 63.o, n.o 4, da Diretiva 2016/680 limita‑se a prever que os Estados‑Membros comuniquem à Comissão o texto das principais disposições de direito interno que adotarem no domínio abrangido por esta diretiva.

70

Por último, há que salientar que, quando uma diretiva foi corretamente transposta, os seus efeitos afetam os particulares por intermédio das medidas de aplicação tomadas pelo Estado‑Membro em causa (v., neste sentido, Acórdão de 15 de maio de 1986, Johnston, 222/84, EU:C:1986:206, n.o 51), ao contrário de um regulamento cujas disposições produzem, regra geral, um efeito imediato nas ordens jurídicas nacionais, sem que seja necessário que as autoridades nacionais tomem medidas de aplicação (v., neste sentido, Acórdão de 7 de abril de 2022, IFAP, C‑447/20 e C‑448/20, EU:C:2022:265, n.o 88 e jurisprudência referida). Daqui resulta que, quando o legislador nacional prevê o tratamento de dados biométricos e genéticos pelas autoridades competentes, na aceção do artigo 3.o, ponto 7, da Diretiva 2016/680, suscetíveis de serem abrangidos quer pelo âmbito de aplicação desta diretiva quer pelo do RGPD, pode, por uma questão de clareza e de precisão, fazer referência expressa, por um lado, às disposições de direito nacional que asseguram a transposição do artigo 10.o desta diretiva e, por outro, ao artigo 9.o deste regulamento. Em contrapartida, este requisito de clareza e de precisão não pode exigir, ainda, uma menção à referida diretiva.

71

Em quarto lugar, importa recordar que a obrigação que incumbe a um Estado‑Membro de adotar todas as medidas necessárias para alcançar o resultado imposto por uma diretiva, prevista no artigo 288.o, terceiro parágrafo, TFUE, se impõe a todas as autoridades dos Estados‑Membros, incluindo, no âmbito das suas competências, às autoridades jurisdicionais. Daqui decorre que, quando aplicam o direito interno, os órgãos jurisdicionais nacionais são obrigados a interpretá‑lo, tanto quanto possível, à luz do texto e da finalidade da diretiva em causa, para alcançar o resultado por esta prosseguido (v., neste sentido, Acórdão de 7 de novembro de 2019, Profi Credit Polska, C‑419/18 e C‑483/18, EU:C:2019:930, n.os 73 e 75 e jurisprudência referida).

72

Por conseguinte, perante uma contradição aparente, como a descrita pelo órgão jurisdicional de reenvio no âmbito da segunda questão, entre, por um lado, disposições de uma legislação nacional que parecem excluir o tratamento de dados genéticos e biométricos pelas autoridades competentes para os efeitos abrangidos pela Diretiva 2016/680 e, por outro, outras disposições dessa legislação que autorizam esse tratamento, esse órgão jurisdicional é obrigado a dar a essas disposições uma interpretação que preserve o efeito útil desta diretiva. Em especial, quando constata a existência de disposições suscetíveis de cumprir o requisito previsto no artigo 10.o, alínea a), da referida diretiva, cabe‑lhe verificar se estas não têm, na realidade, um âmbito de aplicação diferente do das disposições com as quais parecem estar em contradição.

73

A este respeito, importa, nomeadamente, sublinhar que o artigo 9.o, n.o 2, da Diretiva 2016/680 não exclui o tratamento de dados biométricos e genéticos pelas autoridades competentes, na aceção do artigo 3.o, ponto 7, desta diretiva, no âmbito de outras atribuições que não as exercidas para os fins enunciados no artigo 1.o, n.o 1, da referida diretiva. Do mesmo modo, como resulta do n.o 63 do presente acórdão, o artigo 9.o do RGPD, que se aplica ao tratamento desses dados, desde que este não esteja abrangido pelas exceções enumeradas exaustivamente no seu artigo 2.o, n.o 2, não o proíbe de modo absoluto, na condição de esse tratamento corresponder a uma das situações enunciadas no artigo 9.o, n.o 2, do referido regulamento. Nestas condições, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se a referência ao RGPD nessas disposições nacionais não visa, na realidade, tratamentos de dados efetuados pelas autoridades competentes para fins diferentes dos abrangidos pela Diretiva 2016/680, pelo que as referidas disposições não estão em contradição com as que, em conformidade com o artigo 10.o, alínea a), desta diretiva, preveem o tratamento desses dados para os efeitos abrangidos pela referida diretiva.

74

No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio, por um lado, que as disposições de direito nacional na origem das questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio são disposições de direito material que regulam as atividades do Ministério da Administração Interna. A primeira dessas disposições prevê que o tratamento de dados pessoais por este ministério é efetuado ao abrigo desta lei, em conformidade com o RGPD e com o ato de direito nacional que transpõe a Diretiva 2016/680, e a segunda das referidas disposições enuncia que o tratamento de dados pessoais que contenham dados genéticos e dados biométricos destinados a identificar uma pessoa singular de forma inequívoca só é permitido nas condições previstas no artigo 9.o do referido regulamento ou na disposição de direito nacional que transpõe o artigo 10.o da referida diretiva. Por outro lado, resulta igualmente dessa decisão que a disposição de direito material que fornece uma base legal expressa à recolha de dados biométricos e genéticos, no âmbito do registo policial, prossegue unicamente finalidades de proteção da segurança nacional, de luta contra a criminalidade e de manutenção da ordem pública.

75

Por conseguinte, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio fiscalizar se a dupla referência ao artigo 9.o do RGPD e à disposição de direito nacional que transpõe o referido artigo 10.o se justifica pelo facto de o âmbito de aplicação da disposição de direito material que contém essa dupla referência abranger todas as atividades dos serviços do Ministério da Administração Interna, as quais, segundo as indicações do Governo búlgaro, incluem tanto as atividades enunciadas no artigo 1.o, n.o 1, da referida diretiva como outras atividades suscetíveis de estarem abrangidas pelo referido regulamento. Além disso, cabe a esse órgão jurisdicional certificar‑se de que, nomeadamente no que respeita à disposição de direito material que fornece uma base legal para a recolha de dados biométricos e genéticos no âmbito do registo policial, todas as disposições de direito nacional pertinentes podem ser interpretadas, em conformidade com o direito da União, no sentido de que resultam dessas disposições, de forma suficientemente clara, precisa e inequívoca, os casos em que se aplicam as regras de direito nacional que transpõem a diretiva em causa e os casos em que são as regras do RGPD que são pertinentes.

76

Tendo em conta tudo o que precede, há que responder à primeira e segunda questões que o artigo 10.o, alínea a), da Diretiva 2016/680, lido à luz do artigo 52.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que o tratamento de dados biométricos e genéticos pelas autoridades policiais com vista às suas atividades de investigação, para efeitos de luta contra a criminalidade e de manutenção da ordem pública, é autorizado pelo direito de um Estado‑Membro, na aceção do artigo 10.o, alínea a), desta diretiva, desde que o direito desse Estado‑Membro contenha uma base jurídica suficientemente clara e precisa para autorizar o referido tratamento. O facto de o ato legislativo nacional que contém essa base jurídica se referir, por outro lado, ao RGPD e não à Diretiva 2016/680 não é suscetível, em si mesmo, de pôr em causa a existência de tal autorização, desde que resulte, de forma suficientemente clara, precisa e inequívoca da interpretação de todas as disposições aplicáveis do direito nacional que o tratamento de dados biométricos e genéticos em causa é abrangido pelo âmbito de aplicação desta diretiva e não por este regulamento.

Quanto à terceira questão

77

Com a terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 6.o, alínea a), da Diretiva 2016/680 e os artigos 47.o e 48.o da Carta devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que prevê que, em caso de recusa da pessoa constituída arguida por uma infração dolosa objeto de ação penal ex officio em cooperar voluntariamente na recolha de dados biométricos e genéticos que lhe dizem respeito para efeitos do seu registo, o órgão jurisdicional penal competente é obrigado a autorizar a execução coerciva dessa recolha, sem dispor do poder de apreciar se existem motivos fundados para crer que o titular dos dados cometeu a infração que lhe é imputada.

78

A título preliminar, importa salientar que esta questão é submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio a respeito de um processo penal no âmbito do qual é aplicável uma disposição de direito nacional que prevê que, em caso de recusa do titular de dados em cooperar na recolha de dados biométricos e genéticos que lhe dizem respeito para efeitos do seu registo, efetuado para as finalidades abrangidas pelo artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2016/680, o órgão jurisdicional competente, para decidir sobre a responsabilidade penal dessa pessoa, está habilitado a autorizar essa recolha. Por outro lado, esta mesma disposição de direito nacional aplica‑se aos dados relativos às pessoas constituídas arguidas por infrações dolosas objeto de ação penal ex officio. Segundo as indicações do órgão jurisdicional de reenvio, a grande maioria das infrações previstas no Código Penal são dolosas e quase todas são objeto de ação penal ex officio. Em conformidade com as regras relativas ao processo penal búlgaro, uma pessoa é constituída arguida quando estão reunidos elementos de prova suficientes de que essa pessoa é culpada de ter cometido uma infração objeto de ação penal ex officio.

79

Por outro lado, segundo as precisões prestadas pelo Governo búlgaro no âmbito das respostas escritas às questões submetidas pelo Tribunal de Justiça, as regras relativas ao processo penal búlgaro preveem que a constituição de arguido pode ocorrer em qualquer momento do processo preliminar, que constitui a primeira fase do processo penal no decurso da qual são praticados os atos de inquérito e de recolha dos elementos de prova e, de qualquer modo, antes do encerramento do inquérito. Como resulta da decisão de reenvio, e como também esclarece o Governo búlgaro, o titular dos dados pode, posteriormente à constituição de arguido, apresentar elementos para a sua defesa, em especial no âmbito da fase de comunicação dos elementos de inquérito que ocorre após o encerramento do mesmo.

80

No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio indica que a legislação nacional em causa não confere ao órgão jurisdicional que autoriza a recolha de dados biométricos e genéticos relativos à pessoa constituída arguida para efeitos do seu registo a competência para apreciar as provas em que se baseia a constituição de arguido, a qual cabe às autoridades responsáveis pelo inquérito. Além disso, esclarece que esse órgão jurisdicional se pronuncia sobre esse pedido de autorização unicamente com base numa cópia do despacho de constituição de arguido e da declaração através da qual o titular dos dados recusa a recolha dos mesmos.

81

Neste contexto, há que considerar que a terceira questão do órgão jurisdicional de reenvio se divide, como sugerem o Governo búlgaro e a Comissão, em três partes. Em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o artigo 6.o, alínea a), da Diretiva 2016/680, que se refere à categoria de pessoas relativamente às quais existem motivos fundados para crer que cometeram ou estão prestes a cometer uma infração penal, se opõe a uma legislação nacional que prevê a recolha coerciva de dados biométricos e genéticos relativos a uma pessoa singular para efeitos do seu registo, a respeito da qual estão reunidos elementos de prova suficientes de que é culpada de ter cometido uma infração dolosa objeto de ação penal ex officio, permitindo, por força do direito nacional, a sua constituição como arguida. Em segundo lugar, interroga‑se quanto à questão de saber se, tendo em conta os limites do poder de apreciação do órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se sobre a execução coerciva de tal recolha, este pode garantir ao titular de dados uma tutela jurisdicional efetiva, em conformidade com o artigo 47.o da Carta. Em terceiro lugar, pergunta se, apesar destes limites, o respeito pelo direito à presunção de inocência, previsto no artigo 48.o da Carta, pode ser garantido.

Quanto ao alcance do artigo 6.o, alínea a), da Diretiva 2016/680

82

O artigo 6.o da Diretiva 2016/680 obriga os Estados‑Membros a preverem que o responsável pelo tratamento estabeleça, «se aplicável, e na medida do possível», uma distinção clara entre os dados pessoais de diferentes categorias de titulares de dados, tais como as mencionadas nas alíneas a) a d) deste artigo, a saber, respetivamente, as pessoas relativamente às quais existem motivos fundados para crer que cometeram ou estão prestes a cometer uma infração penal, as pessoas condenadas por uma infração penal, as vítimas de uma infração penal ou pessoas relativamente às quais certos factos levam a crer que possam vir a ser vítimas de uma infração penal, e, por último, terceiros envolvidos numa infração penal, tais como pessoas que possam ser chamadas a testemunhar em investigações penais relacionadas com infrações penais ou em processos penais subsequentes, pessoas que possam fornecer informações sobre infrações penais, ou contactos ou associados de uma das pessoas a que se referem as alíneas a) e b) do referido artigo.

83

Assim, os Estados‑Membros devem assegurar que seja feita uma distinção clara entre os dados das diferentes categorias de titulares de dados, de modo a que, como sublinhou o advogado‑geral no n.o 27 das suas conclusões, não lhes seja imposto indiscriminadamente o mesmo grau de ingerência no direito fundamental à proteção de dados pessoais, seja qual for a categoria a que pertencem. A este respeito, como se deduz do considerando 31 da Diretiva 2016/680, a categoria de pessoas definida no artigo 6.o, alínea a), desta diretiva corresponde à de pessoas suspeitas de terem cometido uma infração penal.

84

No entanto, decorre da redação do artigo 6.o da Diretiva 2016/680 que a obrigação que esta disposição impõe aos Estados‑Membros não é absoluta. Com efeito, por um lado, a expressão «se aplicável, e na medida do possível», que aí figura, indica que cabe ao responsável pelo tratamento determinar, casuisticamente, se pode ser feita uma distinção clara entre os dados pessoais das diferentes categorias de titulares de dados. Por outro lado, a expressão «tais como» que figura neste artigo indica que as categorias de pessoas aí enumeradas não têm caráter exaustivo.

85

De resto, há que salientar que a existência de um número de elementos de prova suficiente da culpabilidade de uma pessoa constitui, em princípio, um motivo fundado para crer que ela cometeu a infração em causa. Assim, uma legislação nacional que prevê a recolha coerciva dos dados biométricos e genéticos das pessoas singulares para efeitos do seu registo, desde que estejam reunidas provas suficientes de que o titular de dados é culpado de ter cometido uma infração penal, parece conforme ao objetivo do artigo 6.o, alínea a), da Diretiva 2016/680.

86

Resulta de tudo o que precede que o artigo 6.o, alínea a), da Diretiva 2016/680 não se opõe a uma legislação nacional que prevê a recolha coerciva de dados biométricos e genéticos para efeitos do seu registo relativos a pessoas em relação às quais estão reunidos elementos de prova suficientes de que são culpadas de terem cometido uma infração dolosa objeto de ação penal ex officio e que foram constituídas arguidas por esse motivo.

Quanto ao respeito pelo direito a uma tutela jurisdicional efetiva

87

Em primeiro lugar, importa recordar que o direito a uma proteção jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 47.o da Carta, deve ser reconhecido a qualquer pessoa que invoque direitos ou liberdades garantidos pelo direito da União contra uma decisão lesiva, suscetível de violar esses direitos ou liberdades [v., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2020, État luxembourgeois (Direito à ação contra um pedido de informação em matéria fiscal), C‑245/19 e C‑246/19, EU:C:2020:795, n.os 55, 57 e 58 e jurisprudência referida].

88

Por conseguinte, qualquer pessoa constituída arguida que se tenha oposto à recolha dos dados fotográficos, dactiloscópicos e genéticos que lhe dizem respeito no âmbito de um procedimento como o registo policial, que deve respeitar os requisitos do artigo 10.o da Diretiva 2016/680, deve poder beneficiar, como exige o artigo 47.o da Carta, do direito à ação perante um tribunal contra a decisão de autorizar a execução coerciva dessa recolha para efeitos de invocar os direitos que lhe são conferidos pelas garantias previstas nesta disposição e, nomeadamente a garantia de que, por força do artigo 10.o, alínea a), desta diretiva, a recolha de dados biométricos e genéticos seja efetuada em conformidade com a regulamentação nacional que a autoriza. Em especial, esta garantia implica que o órgão jurisdicional competente possa fiscalizar se a medida de constituição de arguido que constitui a base legal para esse registo policial foi adotada, em conformidade com as regras do processo penal nacional, à luz de elementos de prova suficientes de que o titular de dados é culpado de ter cometido uma infração dolosa objeto de ação penal ex officio.

89

A este respeito, deve recordar‑se que o direito a uma tutela jurisdicional efetiva não constitui uma prerrogativa absoluta e que, em conformidade com o artigo 52.o, n.o 1, da Carta, podem ser introduzidas restrições, desde que, em primeiro lugar, essas restrições sejam previstas por lei; em segundo lugar, respeitem o conteúdo essencial dos direitos e liberdades em causa; e, em terceiro lugar, que, na observância do princípio da proporcionalidade, sejam necessárias e correspondam efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros [v., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2020, État luxembourgeois (Direito à ação contra um pedido de informação em matéria fiscal), C‑245/19 e C‑246/19, EU:C:2020:795, n.os 49 e 51 e jurisprudência referida].

90

Por outro lado, há que salientar que o artigo 54.o da Diretiva 2016/680 impõe aos Estados‑Membros a obrigação de preverem que a pessoa que considere que os seus direitos previstos nas disposições adotadas ao abrigo desta diretiva foram violados em resultado de um tratamento dos seus dados pessoais efetuado em violação das referidas disposições tem direito a uma tutela jurisdicional efetiva. Daqui resulta que o próprio legislador da União não restringiu o exercício do direito à ação consagrado no artigo 47.o da Carta e que os Estados‑Membros podem restringir esse exercício, desde que cumpram os requisitos estabelecidos no artigo 52.o, n.o 1, da Carta [v., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2020, État luxembourgeois (Direito à ação contra um pedido de informação em matéria fiscal), C‑245/19 e C‑246/19, EU:C:2020:795, n.os 63 e 64].

91

Por conseguinte, há que determinar se, sem prejuízo da via de recurso jurisdicional prevista no direito nacional em aplicação do artigo 54.o da Diretiva 2016/680, o facto de o órgão jurisdicional competente, para autorizar uma medida de execução coerciva da recolha de dados biométricos e genéticos relativos a pessoas constituídas arguidas, não poder proceder a uma fiscalização, quanto ao mérito, das condições da constituição de arguido em que assenta essa medida de execução coerciva constitui uma restrição permitida do direito a uma tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 47.o da Carta.

92

No que respeita à primeira condição referida no n.o 89 do presente acórdão, em conformidade com a jurisprudência recordada no n.o 65 do mesmo, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se os limites fixados ao seu poder de apreciação pelo direito nacional, no âmbito de um pedido para que autorize a execução coerciva da recolha de dados biométricos e genéticos relativos a uma pessoa constituída arguida para efeitos do seu registo, são enunciados por esse direito de forma suficientemente clara e precisa.

93

No que respeita à segunda condição, decorre da jurisprudência que o conteúdo essencial do direito à ação inclui, entre outros elementos, o que consiste, para o titular desse direito, em poder aceder a um tribunal competente que assegure o respeito pelos direitos que o direito da União lhe garante e, para o efeito, examine todas as questões de facto e de direito pertinentes para a resolução do litígio que lhe foi submetido [Acórdão de 6 de outubro de 2020, État luxembourgeois (Direito à ação contra um pedido de informação em matéria fiscal), C‑245/19 e C‑246/19, EU:C:2020:795, n.o 66 e jurisprudência referida].

94

No entanto, resulta também da jurisprudência do Tribunal de Justiça que esta condição não implica, enquanto tal, que o titular do direito a uma tutela jurisdicional efetiva disponha de uma via de recurso direta que tenha por objeto, a título principal, a impugnação de uma determinada medida, desde que, por outro lado, existam, nos diversos órgãos jurisdicionais nacionais competentes, uma ou várias vias de recurso que lhe permitam obter, a título subordinado, a fiscalização judicial dessa medida que assegure o respeito pelos direitos e liberdades que o direito da União lhe garante [v., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2020, État luxembourgeois (Direito à ação contra um pedido de informação em matéria fiscal), C‑245/19 e C‑246/19, EU:C:2020:795, n.o 79, e jurisprudência referida].

95

Em especial, como sublinhou, em substância, o advogado‑geral no n.o 36 das suas conclusões, a terceira questão baseia‑se na hipótese de a fase preliminar do processo penal durante a qual ocorre a execução coerciva da recolha de dados biométricos e genéticos relativos a uma pessoa constituída arguida para efeitos do seu registo ser seguida de uma fase judicial. Ora, se não pode ser fiscalizada no momento do pedido de autorização da execução coerciva, a existência de um número de elementos de prova suficiente, condição necessária para que o titular de dados possa ser obrigado a submeter‑se à recolha de dados biométricos e genéticos, deverá necessariamente poder ser verificada aquando dessa fase judicial, durante a qual o órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se deve ter a possibilidade de examinar todas as questões de direito e de facto relevantes, em especial para verificar se esses dados biométricos e genéticos não foram obtidos em violação dos direitos garantidos ao interessado pelo direito da União [v., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2020, État luxembourgeois (Direito à ação contra um pedido de informação em matéria fiscal), C‑245/19 e C‑246/19, EU:C:2020:795, n.os 81 a 83 e jurisprudência referida].

96

De qualquer modo, em conformidade com o artigo 54.o da Diretiva 2016/680, o direito nacional deve oferecer ao interessado a possibilidade de contestar de modo útil a recolha coerciva dos seus dados biométricos e genéticos no âmbito de uma ação judicial, baseada na violação alegada dos direitos que esta diretiva lhe confere devido à referida recolha, sem prejuízo de qualquer via de recurso administrativo ou extrajudicial disponível, nomeadamente o direito de apresentar uma reclamação junto de uma autoridade de controlo. Por conseguinte, mesmo na hipótese de a fase preliminar do processo penal não ser seguida de uma fase judicial, nomeadamente não sendo exercida a ação penal, o titular de dados deve poder obter uma fiscalização judicial completa da legalidade do tratamento dos dados em causa. Assim, quando, para dar cumprimento à obrigação prevista no referido artigo 54.o, o direito nacional oferece essas garantias, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, deve presumir‑se o respeito pelo conteúdo essencial do direito a uma tutela jurisdicional efetiva, mesmo que o próprio órgão jurisdicional que autoriza a execução coerciva da recolha em causa não disponha, no momento em que se pronuncia sobre a mesma, do poder de apreciação necessário para conceder essa tutela.

97

No que respeita à terceira condição, há que salientar, antes de mais, que a recolha de dados genéticos e biométricos relativos a pessoas constituídas arguidas no âmbito de um processo penal para efeitos do seu registo prossegue as finalidades enunciadas no artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2016/680, em especial as relativas à prevenção, à investigação, à deteção ou à repressão de infrações penais, que constituem objetivos de interesse geral reconhecidos pela União.

98

A este respeito, importa sublinhar que essa recolha é suscetível de contribuir para o objetivo enunciado no considerando 27 da Diretiva 2016/680, segundo o qual, para efeitos de prevenção, investigação ou repressão de infrações penais, é necessário que as autoridades competentes tratem os dados pessoais, recolhidos no contexto da prevenção, investigação, deteção ou repressão de infrações penais específicas para além desse contexto, a fim de obter uma melhor compreensão das atividades criminais e de estabelecer ligações entre as diferentes infrações penais detetadas.

99

No caso em apreço, como indicou o Governo búlgaro nas suas observações escritas e especificou no âmbito de uma resposta escrita a uma pergunta feita pelo Tribunal de Justiça, o registo policial instituído pelo direito nacional prossegue duas finalidades essenciais. Por um lado, estes dados são recolhidos e tratados para serem confrontados com outros dados recolhidos durante inquéritos relativos a outras infrações. Esta finalidade diz igualmente respeito, segundo este governo, ao confronto com dados recolhidos noutros Estados‑Membros. Por outro lado, os referidos dados podem também ser tratados para efeitos do processo penal no âmbito do qual o titular de dados foi constituído arguido.

100

Ora, o facto de subtrair temporariamente à fiscalização do juiz a apreciação das provas em que se baseia a constituição de arguido do titular de dados, e portanto a recolha dos seus dados biométricos e genéticos, pode revelar‑se justificado durante a fase preliminar do processo penal. Com efeito, tal fiscalização, nesta fase, poderia dificultar a tramitação do inquérito penal durante o qual esses dados são recolhidos e restringir excessivamente a capacidade dos investigadores de esclarecer outras infrações com base numa comparação desses dados com os dados recolhidos noutros inquéritos. Esta restrição da tutela jurisdicional efetiva não é, portanto, desproporcionada, quando o direito nacional garante posteriormente uma fiscalização jurisdicional efetiva.

101

Resulta do exposto que o artigo 47.o da Carta não se opõe a que um órgão jurisdicional nacional, quando decide sobre um pedido de autorização para proceder à execução coerciva da recolha de dados biométricos e genéticos de uma pessoa constituída arguida para efeitos do seu registo, não tenha a possibilidade de apreciar as provas em que assenta essa constituição de arguido, desde que o direito nacional garanta posteriormente uma fiscalização jurisdicional efetiva das condições da referida constituição de arguido, da qual decorre a autorização para proceder a essa recolha.

Quanto ao respeito pela presunção de inocência

102

A título preliminar, importa recordar que, segundo o artigo 48.o, n.o 1, da Carta, cujo conteúdo corresponde ao do artigo 6.o, n.o 2, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, todo o arguido se presume inocente enquanto não tiver sido legalmente provada a sua culpa.

103

Em especial, o Tribunal de Justiça reconheceu que resulta da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que, nomeadamente, a presunção de inocência é violada se uma decisão judicial relativa a um arguido refletir o sentimento de que é culpado, embora a sua culpa não tenha sido previamente demonstrada no respeito pela lei (v., neste sentido, Acórdão de 25 de fevereiro de 2021, Dalli/Comissão, C‑615/19 P, EU:C:2021:133, n.o 224 e jurisprudência referida).

104

Por outro lado, como resulta do considerando 31 da Diretiva 2016/680, o estabelecimento de diferentes categorias de pessoas às quais devem corresponder diferentes tratamentos dos seus dados pessoais, em aplicação do artigo 6.o desta diretiva, não deverá impedir a aplicação do direito à presunção de inocência, tal como garantido pela Carta e pela Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.

105

No que respeita às interrogações do órgão jurisdicional de reenvio sobre o respeito pelo direito à presunção de inocência por uma decisão judicial que autoriza a recolha de dados biométricos e genéticos relativos a pessoas constituídas arguidas para efeitos do seu registo, há que salientar, em primeiro lugar, que, na medida em que o direito nacional preveja que essa recolha está limitada à categoria das pessoas constituídas arguidas, isto é, a uma categoria de pessoas cuja responsabilidade penal ainda não foi demonstrada, a referida recolha não pode ser considerada, em si mesma, suscetível de refletir o sentimento das autoridades de que estas pessoas são culpadas, na aceção da jurisprudência referida no n.o 103 do presente acórdão.

106

Em segundo lugar, há que constatar que uma decisão judicial que autoriza a recolha de dados biométricos e genéticos relativos a pessoas constituídas arguidas para efeitos do seu registo, quando se limita a tomar nota da constituição de arguido do titular de dados e da sua recusa em se submeter a essa recolha, não pode ser interpretada como uma tomada de posição sobre a culpabilidade dessa pessoa nem, por conseguinte, como uma violação da presunção de inocência da referida pessoa.

107

Com efeito, o facto de o órgão jurisdicional que deve proferir essa decisão judicial não poder apreciar, nesta fase do processo penal, o caráter suficiente dos elementos de prova em que assenta a constituição de arguido do titular de dados constitui uma garantia para o mesmo do respeito pelo direito à presunção de inocência.

108

Essa garantia impõe‑se tanto mais quando o direito nacional, como a disposição em causa no processo principal, prevê que o órgão jurisdicional competente para decidir sobre a execução coerciva da recolha de dados biométricos e genéticos relativos a pessoas constituídas arguidas para efeitos do seu registo é aquele que, na fase judicial do processo penal, deverá decidir sobre a responsabilidade penal dessa pessoa. Com efeito, o respeito pelo direito à presunção de inocência exige que esse órgão jurisdicional esteja isento de qualquer preconceito e de qualquer ideia preconcebida quando proceder a esse exame (v., neste sentido, Acórdão de 16 de novembro de 2021, Prokuratura Rejonowa w Mińsku Mazowieckim e o., C‑748/19 a C‑754/19, EU:C:2021:931, n.o 88).

109

Resulta do exposto que o direito à presunção de inocência, consagrado no artigo 48.o da Carta, não se opõe a que as pessoas constituídas arguidas, na fase preliminar do processo penal, sejam sujeitas a uma medida de recolha de dados biométricos e genéticos que lhes dizem respeito para efeitos do seu registo, autorizada por um órgão jurisdicional que não tem o poder de apreciar, nesta fase, as provas em que assenta essa constituição de arguido.

110

Resulta de tudo o que precede que há que responder à terceira questão que o artigo 6.o, alínea a), da Diretiva 2016/680 e os artigos 47.o e 48.o da Carta devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma legislação nacional que prevê que, em caso de recusa da pessoa constituída arguida por uma infração dolosa objeto de ação penal ex officio em cooperar voluntariamente na recolha de dados biométricos e genéticos que lhe dizem respeito para efeitos do seu registo, o órgão jurisdicional penal competente é obrigado a autorizar uma medida de execução coerciva dessa recolha, sem dispor do poder de apreciar se existem motivos fundados para crer que o titular de dados cometeu a infração que lhe é imputada, desde que o direito nacional garanta posteriormente a fiscalização jurisdicional efetiva das condições dessa constituição de arguido, da qual decorre a autorização para proceder à referida recolha.

Quanto à quarta questão

111

A título preliminar, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça instituída pelo artigo 267.o TFUE, cabe a este dar ao juiz nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, incumbe ao Tribunal, se necessário, reformular as questões que lhe são submetidas (Acórdão de 15 de julho de 2021, The Department for Communities in Northern Ireland, C‑709/20, EU:C:2021:602, n.o 61 e jurisprudência referida).

112

Como resulta da decisão de reenvio e foi salientado nos n.os 46 e 49 do presente acórdão, no âmbito da quarta questão, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre o alcance dos requisitos enunciados no artigo 4.o, n.o 1, alíneas a) a c), no artigo 8.o, n.os 1 e 2, e no artigo 10.o da Diretiva 2016/680.

113

Além disso, como foi salientado nos n.os 46 a 48 do presente acórdão, o órgão jurisdicional de reenvio indica que, ao passo que estas disposições lhe pareçam exigir que as autoridades competentes disponham de uma margem de apreciação para determinar a necessidade da recolha de dados biométricos e genéticos e a fundamentem adequadamente, o registo policial previsto na legislação aplicável ao processo principal se aplica imperativamente a todas as pessoas constituídas arguidas por infrações dolosas objeto de ação penal ex officio e às três categorias de dados biométricos e genéticos referidas na disposição de direito nacional em causa no processo principal, sem que esta legislação exija que seja verificada a necessidade concreta de proceder à recolha do conjunto destas categorias de dados.

114

Daqui resulta que há que entender a quarta questão no sentido de que visa determinar, em substância, se o artigo 10.o da Diretiva 2016/680, lido em conjugação com o artigo 4.o, n.o 1, alíneas a) a c), e com o artigo 8.o, n.os 1 e 2, desta diretiva, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que prevê a recolha sistemática de dados biométricos e genéticos de qualquer pessoa constituída arguida por uma infração dolosa objeto de ação penal ex officio para efeitos do seu registo, sem prever a obrigação de a autoridade competente determinar e demonstrar, por um lado, que essa recolha é necessária à realização dos objetivos concretos prosseguidos e, por outro, que esses objetivos não podem ser alcançados através da recolha de apenas uma parte dos dados em questão.

115

Mais especificamente, importa observar que as interrogações do órgão jurisdicional de reenvio dizem respeito ao requisito enunciado no artigo 10.o desta diretiva, segundo o qual o tratamento das categorias especiais de dados referidas neste artigo «só [deve ser autorizado] se for estritamente necessário».

116

A este respeito, em primeiro lugar, importa recordar que, como foi indicado nos n.os 62 e 63 do presente acórdão, o artigo 10.o da Diretiva 2016/680 constitui uma disposição específica que regula os tratamentos das categorias especiais de dados pessoais, incluindo os dados biométricos e genéticos. Como resulta da jurisprudência, a finalidade deste artigo é assegurar uma maior proteção relativamente a esses tratamentos que, devido à particular sensibilidade dos dados em causa e ao contexto do seu tratamento, são suscetíveis de implicar, como resulta do considerando 37 da referida diretiva, riscos significativos para os direitos e as liberdades fundamentais, como o direito ao respeito pela vida privada e o direito à proteção dos dados pessoais, garantidos pelos artigos 7.o e 8.o da Carta [v., por analogia, Acórdão de 24 de setembro de 2019, GC e o. (Supressão de referências a dados sensíveis) (C‑136/17, EU:C:2019:773, n.o 44].

117

Em segundo lugar, como resulta dos próprios termos em que é enunciado no artigo 10.o da Diretiva 2016/680, o requisito segundo o qual o tratamento desses dados «só [é autorizado] se for estritamente necessário» deve ser interpretado no sentido de que define condições reforçadas de licitude do tratamento de dados sensíveis, à luz das que decorrem do artigo 4.o, n.o 1, alíneas b) e c), e do artigo 8.o, n.o 1, desta diretiva, as quais se referem apenas à «necessidade» de um tratamento de dados abrangido, de modo geral, pelo âmbito de aplicação da referida diretiva.

118

Assim, por um lado, a utilização do advérbio «só» antes da expressão «se for estritamente necessário» sublinha que o tratamento de categorias especiais de dados, na aceção do artigo 10.o da Diretiva 2016/680, só pode ser considerado necessário num número limitado de casos. Por outro lado, o caráter «estrito» da necessidade de um tratamento de tais dados implica que essa necessidade seja apreciada de maneira particularmente rigorosa.

119

A circunstância invocada pelo Governo francês de, em certas versões linguísticas do artigo 10.o da Diretiva 2016/680, este artigo[, que na versão em língua francesa desta diretiva refere: «uniquement en cas de nécessité absolue» (só em caso de absoluta necessidade),] se referir aos casos em que o tratamento de dados é «estritamente necessário» não é determinante a este respeito. Com efeito, essa variação terminológica não altera a natureza do critério assim visado e o nível de exigência imposto, uma vez que estas versões linguísticas definem igualmente uma condição reforçada para que seja autorizado o tratamento de dados sensíveis, que implica uma apreciação mais rigorosa da sua necessidade do que no caso de os dados tratados não estarem abrangidos pelo âmbito de aplicação do referido artigo.

120

Por outro lado, como a Comissão também salienta, o requisito segundo o qual um tratamento de dados abrangido pelo artigo 10.o da Diretiva 2016/680 só é autorizado se for estritamente necessário não constava da proposta de diretiva [COM (2012) 10 final] na origem desta diretiva, mas foi posteriormente introduzido pelo legislador da União, que pretendeu assim claramente impor uma condição reforçada da necessidade do tratamento de dados, em conformidade com o objetivo prosseguido por este artigo, que consiste em proteger de maneira acrescida as pessoas no que respeita aos tratamentos de dados sensíveis.

121

Em terceiro lugar, quanto ao conteúdo do requisito segundo o qual o tratamento de dados sensíveis «só [deve ser autorizado] se for estritamente necessário», há que salientar que os requisitos específicos do artigo 10.o da Diretiva 2016/680 constituem uma aplicação especial, aplicável a determinadas categorias de dados, dos princípios enunciados nos artigos 4.o e 8.o desta diretiva, que devem ser respeitados por qualquer tratamento de dados abrangido pelo âmbito de aplicação da mesma. Por conseguinte, o alcance destes diferentes requisitos deve ser determinado à luz dos referidos princípios.

122

Em especial, por um lado, a «estrita necessidade», na aceção do artigo 10.o da Diretiva 2016/680, da recolha de dados biométricos e genéticos das pessoas constituídas arguidas para efeitos do seu registo deve ser determinada tendo em conta as finalidades dessa recolha. Em conformidade com o princípio da limitação das finalidades enunciado no artigo 4.o, n.o 1, alínea b), desta diretiva, essas finalidades devem ser «determinadas, explícitas e legítimas». Por outro lado, embora o requisito segundo o qual o tratamento dos dados biométricos e genéticos «só [deve ser] autorizado se for estritamente necessário» corresponda, como foi salientado nos n.os 117 a 119 do presente acórdão, a uma exigência de maior proteção de determinadas categorias de dados, não deixa de constituir uma aplicação específica às categorias de dados visadas no referido artigo 10.o do princípio da minimização dos dados, enunciado no artigo 4.o, n.o 1, alínea c), da referida diretiva, por força do qual os dados pessoais devem ser adequados, pertinentes e limitados ao necessário relativamente às finalidades para as quais são tratados.

123

Além disso, à luz do artigo 4.o, n.o 1, alínea a), desta mesma diretiva, o alcance deste requisito deve ser igualmente determinado à luz do seu artigo 8.o, n.o 1, nos termos do qual os Estados‑Membros devem prever, nomeadamente, que o tratamento só seja lícito se e na medida em que for necessário para o exercício de uma atribuição pela autoridade competente para os efeitos previstos no artigo 1.o, n.o 1, desta diretiva, bem como do seu artigo 8.o, n.o 2, que exige que o direito de um Estado‑Membro que rege o tratamento no âmbito da referida diretiva especifique pelo menos os objetivos do tratamento, os dados pessoais a tratar e as finalidades do tratamento.

124

A este respeito, as finalidades do tratamento de dados biométricos e genéticos não podem ser designadas em termos demasiado genéricos, mas requerem que sejam definidas de maneira suficientemente precisa e concreta para permitir avaliar a «estrita necessidade» do referido tratamento.

125

Por outro lado, o requisito de «estrita necessidade» do tratamento de dados sensíveis implica uma fiscalização particularmente estrita, neste contexto, do respeito pelo princípio da minimização dos dados.

126

A este respeito, em primeiro lugar, deve recordar‑se, como resulta do considerando 26 da Diretiva 2016/680, que o requisito da necessidade é preenchido quando o objetivo prosseguido pelo tratamento de dados em causa não pode ser razoavelmente alcançado de modo igualmente eficaz através de outros meios menos atentatórios dos direitos fundamentais dos titulares dos dados, em especial os direitos ao respeito pela vida privada e à proteção dos dados pessoais garantidos pelos artigos 7.o e 8.o da Carta (v., neste sentido, Acórdão de 1 de agosto de 2022, Vyriausioji tarnybinės etikos komisija, C‑184/20, EU:C:2022:601, n.o 85 e jurisprudência referida). Nomeadamente, tendo em conta a maior proteção das pessoas no que diz respeito ao tratamento de dados sensíveis, é necessário que o responsável por esse tratamento se certifique de que esse objetivo não pode ser alcançado recorrendo a categorias de dados diferentes das enumeradas no artigo 10.o da Diretiva 2016/680.

127

Em segundo lugar, tendo em conta os riscos significativos que representa o tratamento de dados sensíveis para os direitos e liberdades dos titulares de dados, em especial no contexto das atribuições das autoridades competentes para os efeitos enunciados no artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2016/680, o requisito de «estrita necessidade» implica que se tenha em conta a particular importância do objetivo que esse tratamento visa alcançar. Essa importância pode ser apreciada, designadamente, em função da própria natureza do objetivo prosseguido, nomeadamente do facto de o tratamento servir um objetivo concreto relacionado com a prevenção de infrações penais ou de ameaças à segurança pública que apresentem um certo grau de gravidade, a repressão dessas infrações ou a proteção contra essas ameaças, bem como à luz das circunstâncias específicas em que esse tratamento é efetuado.

128

Tendo em conta o que precede, há que considerar que uma legislação nacional que prevê a recolha sistemática de dados biométricos e genéticos de qualquer pessoa constituída arguida por uma infração dolosa objeto de ação penal ex officio é, em princípio, contrária ao requisito enunciado no artigo 10.o da Diretiva 2016/680, segundo o qual o tratamento de categorias especiais de dados referidas neste artigo «só [deve ser autorizado] se for estritamente necessário».

129

Com efeito, tal legislação é suscetível de conduzir, indiferenciada e generalizadamente, à recolha de dados biométricos e genéticos da maior parte das pessoas constituídas arguidas, uma vez que o conceito de «infração dolosa objeto de ação penal ex officio» reveste um caráter particularmente genérico e é suscetível de se aplicar a um grande número de infrações penais, independentemente da sua natureza e da sua gravidade.

130

É certo que essa legislação limita o âmbito de aplicação da recolha de dados biométricos e genéticos às pessoas constituídas arguidas na fase de instrução de um processo penal, ou seja, a pessoas relativamente às quais existem motivos fundados para crer que cometeram ou estão prestes a cometer uma infração penal, na aceção do artigo 6.o, alínea a), da Diretiva 2016/680. Todavia, o simples facto de uma pessoa ser constituída arguida por uma infração dolosa objeto de ação penal ex officio não pode ser considerado um elemento que permite, por si só, presumir que a recolha dos seus dados biométricos e genéticos é estritamente necessária à luz das finalidades que visa e tendo em conta as ofensas aos direitos fundamentais, em especial aos direitos ao respeito pela vida privada e à proteção dos dados pessoais garantidos pelos artigos 7.o e 8.o da Carta, que daí resultam.

131

Assim, por um lado, se existirem motivos fundados para crer que o titular de dados cometeu uma infração penal, que justifica a sua constituição como arguido, o que pressupõe que já tenham sido reunidos elementos de prova suficientes do envolvimento dessa pessoa na infração, pode haver casos em que a recolha tanto dos dados biométricos como dos dados genéticos não obedecerá a nenhuma necessidade concreta para efeitos do processo penal em curso.

132

Por outro lado, a probabilidade de os dados biométricos e genéticos de uma pessoa constituída arguida serem estritamente necessários no âmbito de processos diferentes daquele em que ocorreu essa constituição de arguido apenas se pode determinar à luz de todos os elementos pertinentes, como, nomeadamente, a natureza e a gravidade da pretensa infração pela qual foi constituída arguida, as circunstâncias especiais dessa infração, o eventual nexo entre a referida infração e outros processos em curso, os antecedentes criminais ou o perfil individual do titular de dados.

133

Nestas condições, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se, para garantir a efetividade do artigo 10.o da Diretiva 2016/680, é possível interpretar a legislação nacional que prevê essa execução coerciva em conformidade com o direito da União. Em especial, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se o direito nacional permite apreciar a «estrita necessidade» de proceder à recolha tanto dos dados biométricos como dos dados genéticos do titular de dados para efeitos do seu registo. Nomeadamente, a este título, seria necessário verificar se a natureza e a gravidade da infração de que o titular de dados, no processo penal principal, é suspeito ou se outros elementos pertinentes, como os referidos no n.o 132 do presente acórdão, podem constituir circunstâncias suscetíveis de demonstrar essa «estrita necessidade». Além disso, haveria que se certificar de que a recolha de dados do registo civil, que está igualmente prevista no âmbito do registo policial, como confirmou o Governo búlgaro no quadro de uma resposta escrita a uma pergunta feita pelo Tribunal de Justiça, não permite, por si só, cumprir os objetivos prosseguidos.

134

Na hipótese de o direito nacional não garantir essa fiscalização da medida de recolha de dados biométricos e genéticos, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio assegurar a plena eficácia do referido artigo 10.o, indeferindo o pedido das autoridades policiais para autorizar a execução coerciva dessa recolha.

135

Resulta de tudo o que precede que o artigo 10.o da Diretiva 2016/680, lido em conjugação com o artigo 4.o, n.o 1, alíneas a) a c), e com o artigo 8.o, n.os 1 e 2, desta diretiva, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que prevê a recolha sistemática de dados biométricos e genéticos de qualquer pessoa constituída arguida por uma infração dolosa objeto de ação penal ex officio para efeitos do seu registo, sem prever a obrigação de a autoridade competente verificar e demonstrar, por um lado, que essa recolha é estritamente necessária à realização dos objetivos concretos prosseguidos e, por outro, que esses objetivos não podem ser alcançados através de medidas que constituam uma ingerência menos gravosa nos direitos e nas liberdades do titular de dados.

Quanto às despesas

136

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:

 

1)

O artigo 10.o, alínea a), da Diretiva (UE) 2016/680 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais pelas autoridades competentes para efeitos de prevenção, investigação, deteção ou repressão de infrações penais ou execução de sanções penais, e à livre circulação desses dados, e que revoga a Decisão‑Quadro 2008/977/JAI do Conselho, lido à luz do artigo 52.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia,

deve ser interpretado no sentido de que:

o tratamento de dados biométricos e genéticos pelas autoridades policiais com vista às suas atividades de investigação, para efeitos de luta contra a criminalidade e de manutenção da ordem pública, é autorizado pelo direito de um Estado‑Membro, na aceção do artigo 10.o, alínea a), desta diretiva, desde que o direito desse Estado‑Membro contenha uma base jurídica suficientemente clara e precisa para autorizar o referido tratamento. O facto de o ato legislativo nacional que contém essa base jurídica se referir, por outro lado, ao Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados), e não à Diretiva 2016/680 não é suscetível, em si mesmo, de pôr em causa a existência de tal autorização, desde que resulte, de forma suficientemente clara, precisa e inequívoca da interpretação de todas as disposições aplicáveis do direito nacional que o tratamento de dados biométricos e genéticos em causa é abrangido pelo âmbito de aplicação desta diretiva e não por este regulamento.

 

2)

O artigo 6.o, alínea a), da Diretiva 2016/680 e os artigos 47.o e 48.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

devem ser interpretados no sentido de que:

não se opõem a uma legislação nacional que prevê que, em caso de recusa da pessoa constituída arguida por uma infração dolosa objeto de ação penal ex officio em cooperar voluntariamente na recolha de dados biométricos e genéticos que lhe dizem respeito para efeitos do seu registo, o órgão jurisdicional penal competente é obrigado a autorizar uma medida de execução coerciva dessa recolha, sem dispor do poder de apreciar se existem motivos fundados para crer que o titular de dados cometeu a infração que lhe é imputada, desde que o direito nacional garanta posteriormente a fiscalização jurisdicional efetiva das condições dessa constituição de arguido, da qual decorre a autorização para proceder à referida recolha.

 

3)

O artigo 10.o da Diretiva 2016/680, lido em conjugação com o artigo 4.o, n.o 1, alíneas a) a c), e com o artigo 8.o, n.os 1 e 2, desta diretiva,

deve ser interpretado no sentido de que:

se opõe a uma legislação nacional que prevê a recolha sistemática de dados biométricos e genéticos de qualquer pessoa constituída arguida por uma infração dolosa objeto de ação penal ex officio para efeitos do seu registo, sem prever a obrigação de a autoridade competente verificar e demonstrar, por um lado, que essa recolha é estritamente necessária à realização dos objetivos concretos prosseguidos e, por outro, que esses objetivos não podem ser alcançados através de medidas que constituam uma ingerência menos gravosa nos direitos e nas liberdades do titular de dados.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: búlgaro.