Na antevéspera do Natal, quero falar do que considero o verdadeiro milagre brasileiro. Para mim, cada uma das mais de 112 milhões de pessoas identificadas como negras (IBGE) deste país é um milagre ambulante. Fruto produzido por uma gente extraordinária, extremamente resistente e potente, que sobreviveu aos castigos mais cruéis já impingidos a um ser humano.
A população afro-brasileira é a encarnação da superação da brutalidade do tráfico transatlântico e da escravização colonial dos séculos 16 a 19. Prova viva do sucesso dos ancestrais em driblar o abandono público, as inúmeras tentativas de apagamento, a eugenia e a negação da cidadania.
Apesar de tudo, ainda estamos aqui. Constituímos no Brasil a maior nação negra fora de África. Até hoje convivemos com o racismo, com a intolerância ao nosso Sagrado, com a marginalização de nossa existência e com uma lista enorme de coisas abjetas.
Contudo a ascendência africana está presente não só no sangue que corre nas veias dos pretos e pardos mas também em quase tudo por aqui, da culinária à cultura.
Está na Pequena África (RJ), onde se localizam: o Cais do Valongo, porta de entrada do maior contingente de escravizados das Américas; a Pedra do Sal, onde vive uma comunidade remanescente de quilombolas; e o antigo Cemitério dos Pretos Novos, onde foram descartados milhares de corpos negros mortos na chegada a estas terras.
Encontra-se no Pelourinho, onde os escravizados eram castigados e atualmente é região turística da primeira capital do país, Salvador (BA). Está impregnada em cada palmo de chão da potência agrícola erguida com trabalho forçado de homens, mulheres e crianças negras.
É um milagre sermos a maioria do povo de uma República em que o Estado, por meio da polícia, matou um negro a cada quatro horas em um terço das unidades da federação em 2023 (Rede de Observatórios da Segurança). Não um "milagre qualquer", mas um fenômeno produzido pela resiliência de um povo que teve e tem inteligência emocional para lutar pelo direito de existir numa sociedade que insiste em negar sua humanidade.
Feliz Natal para todos!
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