"Nove entre dez estrelas de Hollywood usam...". "Caco de telha! Pelamordedeus, pra baixo do chuveiro a-go-ra. Hoje o banho é com caco de telha!".
Ah, o doce e histriônico perfume dessa lembrança. Misturando-se à voz empostada do locutor na TV, o berro de adultos diante de pés e joelhos infantis, encardidos por férias inteiras de lama e pique-esconde.
Sempre fui uma entusiasta da higiene pessoal, mas àquela época não me questionava sobre a décima estrela de cinema. A tal que, no slogan, não se dava ao luxo de usar o famoso sabonete. Será que preferia... Ó, céus. Não é possível. Tratava-se de uma terrível e borbulhante intriga internacional.
Antes de mais nada, é preciso lembrar que estamos no país mais ensaboado do planeta, com média de duas duchas diárias por cidadão. Crise hídrica alguma detém o frenesi de nossa toalete. De dinheiro público a calcinhas que são penduradas na torneira do box, lavamos de tudo um pouco.
Quando fui à Alemanha é que tive consciência do impasse diplomático deflagrado no lavabo de meu primo Klaus. "Aqui são loucos por sabonete líquido. Se compro em barra, me acusam de ser 50% brasileiro. Isso me cheira a xenofobia!", sussurrou, desentocaiando um Palmolive como quem tem ficha suja na Interpol.
De lá para cá, só balde de água fria. Segundo institutos de pesquisa, o Brasil é barra, mas o resto do mundo é cremosinho. 91% dos espanhóis preferem shower gel, assim como 85% dos italianos. Nos EUA e na Grã-Bretanha, bem mais da metade. Ou seja: vivemos numa bolha.
Para não dizer que somos 100% intolerantes à liquidez alheia, até fazemos uso de outros estados saponáceos da matéria. O pastoso, em dupla com a esponja de aço, no skincare das panelas.
Sem esquecer a natureza giratória e misteriosa dos fluidos amarelos em saboneteiras de rodoviária. Aquilo ali é mesmo pras mãos?
Banho é lugar de humildade, autoconhecimento —e nesse quesito, apenas sabonetes sólidos retêm nossos fios mais íntimos. Com o tempo ressecam e abrem estrias, tendo empatia pelas partes do corpo que limpam. São também cultura. Graças à trilha do comercial de Vinolia, uma geração inteira enxaguou a "Primavera" de Vivaldi.
Semana passada, voltando de viagem, tive enfim contato com a fina flor da resistência francesa em Marselha: seus perfumados paralelepípedos de lavanda, rosa, violeta, verbena. Vagando por becos, farejando feirinhas, me senti de alma lavada ao perceber que ainda existem outros como nós. Ninguém solta a bucha de ninguém.
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