João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Para os eleitores de Trump, seus vícios são virtudes e razão do seu carisma

Filme 'O Aprendiz' vale a pena por ser uma tentativa honesta de explicar as origens do atual candidato à Presidência americana

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Quem vai ganhar a eleição nos Estados Unidos? Só um maluco aposta nessa roleta.

Fatalmente, há malucos no mundo. Um colega americano, que conseguiu acertar nas duas últimas eleições, diz que é Donald Trump. Kamala Harris tem problemas com o voto masculino, diz ele. Basta olhar para os estados-chave —Pensilvânia, Michigan, Wisconsin.

Cena do filme o filme “O Aprendiz”, em que o jovem Trump aparece sentado no interior de um jato particular de frente a uma mulher em um vestido vermelho
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 22 de outubro de 2024 - Angelo Abu/Folhapress

"E as mulheres?", pergunto eu. "As mulheres não votam em mulheres", conclui, com uma gargalhada provocadora. Não sei, não. No "cinturão da ferrugem", as coisas estão empatadas.

E, entre as mulheres, a vantagem de Harris é indiscutível: a sua posição liberal no aborto é o argumento mais forte da campanha para conquistar o voto feminino.

Como dizem os lusitanos, cuidados e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém.

Meu ponto, hoje, é outro: desde 2016, ou até antes, sempre defendi que o maior problema da "intelligentsia" acadêmica ou midiática foi ter subestimado o Donald. Abundam insultos e caricaturas. Faltam tentativas sérias de compreender aquela cabeça, por mais indigesta ou perigosa que seja.

Felizmente, a arte tende a ocupar os espaços vazios e o filme "O Aprendiz", de Ali Abbasi, é altamente recomendável. Não por ser um grande filme, apesar das interpretações irretocáveis de Sebastian Stan —como o jovem Trump— e Jeremy Strong —como Roy Cohn; vem aí Oscar.

O filme vale a pena por ser uma tentativa honesta de explicar as origens do personagem.

Já sabia das ligações entre Trump e Cohn, esse "príncipe das trevas" da política americana que representa bem o estilo paranoico que a define: uma propensão para acreditar em conspirações e batalhas apocalípticas, que por sua vez convidam a novas conspirações e batalhas apocalípticas.

Mas o filme acrescenta informação ao mostrar a relação quase paternal que Cohn teve com Trump. Os métodos sujos de Cohn abriram o caminho para que Trump construísse fortuna e sucesso.

Mas é a sua "filosofia de vida", digamos assim, que impregnou o Donald com três lições valiosas.

A primeira é "atacar, atacar, atacar" os adversários, mesmo em momentos de aparente fraqueza. A segunda é ter com a verdade aquele tipo de relação folgada que os pós-modernistas foram defendendo por aí: não existe a verdade, existem verdades relativas que vamos construindo (e desconstruindo) ao sabor das nossas conveniências. E, enfim, nunca admitir a derrota, mesmo na derrota.

Esse caldo amoral combinou bem com uma personalidade emocionalmente embotada (no filme, a recusa de Trump em fazer o luto pela morte do irmão Freddy é pungente de tão patética) e narcísica até à demência (a violação da primeira mulher tem como gatilho a intolerável calvície do Donald).

Será tudo isso verdade? "Se non è vero, è ben trovato": na sua conduta pública, e em especial na política, as três lições de Roy Cohn são onipresentes em Trump: a atitude agressiva, os "fatos alternativos" e a negação de qualquer fracasso, como a derrota em 2020.

O embotamento emocional e o narcisismo patológico, esses, dispensam comentários. Para usar a linguagem de Max Weber, o mundo que aprecia a autoridade legal-racional —baseada em leis, processos burocráticos, racionalidade e impessoalidade— olha para Trump como uma aberração de circo. Esse é o mundo da "intelligentsia" acadêmica ou midiática.

Mas há um outro mundo que, ainda segundo Weber, prefere outro tipo de autoridade: a carismática. Em Weber, o líder carismático emerge em épocas de crise como depositário das aspirações do rebanho. Não interessa se é uma figura democrática (Churchill, por exemplo) ou autoritária (Hitler, Mussolini).

O que distingue o líder carismático são as qualidades excepcionais que ele acredita possuir e que os seus seguidores reconhecem na sua augusta pessoa. São precisos dois para dançar esse tango.

Como é evidente, o carisma contém ainda ressonâncias religiosas que denunciam a sua origem, até etimológica, razão pela qual os movimentos populistas se parecem tanto com aqueles das seitas religiosas.

Ao contrário do que pensa a mente iluminista, existe no bicho humano uma necessidade de crença, mesmo secular, que o leva a seguir salvadores ocasionais que emergem na paisagem política com a mesma rapidez com que desaparecem um dia.

Será o 5 de novembro esse dia?

Não faço apostas, repito. Mas se o Donald voltar, não vale a pena cobrir o homem de caricaturas e insultos, mesmo que a perspetiva para os próximos 4 anos seja assustadora (e, para os europeus, fúnebre). Melhor compreender que, para a maioria que o elegeu, os seus vícios são virtudes e razão do seu carisma.

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