Lúcia Guimarães

É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.

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Lúcia Guimarães

Pedágio urbano em Nova York testa capacidade democrata de governar

Para a medida ter sucesso, é preciso revisitar o automóvel como símbolo do mito do individualismo como aspiração democrática

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No último domingo (5) registrei dois fatos que considerava altamente improváveis. Completei 40 anos da chegada a Nova York —com planos de ficar por um ano. E a cidade passou a cobrar pedágio urbano de motoristas na área central de Manhattan.

Nas últimas quatro décadas, só pertenci brevemente à minoria de proprietários de automóveis nesta ilha, onde 74% dos moradores dependem do antiquado sistema de transporte público. No final dos anos 1980, aflita para fazer viagens curtas com crianças, comprei um Chevette com 135 mil km rodados.

A imagem mostra a Ponte do Brooklyn com o skyline de Nova York ao fundo. Há várias pessoas caminhando na ponte, e os edifícios altos da cidade se destacam, incluindo o One World Trade Center. O céu está claro e azul, e há tráfego visível na ponte
Veículos em direção a Manhattan pela Brooklyn Bridge - Adam Gray/5.jan.25/Reuters

Durante os quatro anos seguintes, pedi a parentes e amigos para tomar o carro emprestado e me livrar do inferno de procurar estacionamento. Era tão penosa e absurda a rotina que, certa vez, a bordo de um ônibus que tinha parado num farol a mais de 10 quilômetros do meu prédio, minha filha pequena reagiu como se tivesse visto uma aparição e gritou: "Olha, mãe, uma vaga!"

Como é possível, se a maioria ia se beneficiar, apenas um terço dos nova-iorquinos terem apoiado o pedágio urbano, no longo período que precedeu esta semana, marcado por demonstrações de covardia política e ações na Justiça?

Uma explicação mais mordaz, vinda de críticos da acelerada gentrificação da maior metrópole americana, seria o fato de que Manhattan se assemelha cada vez mais a um imenso e afluente condomínio com portões invisíveis.

Outra explicação provável estaria na falta de imaginação de líderes políticos, que destacavam o pedágio principalmente como financiador de reparos na infraestrutura do metrô, e da imprensa local, cuja cobertura é focada na inconveniência a motoristas, não nos benefícios ambientais e de qualidade de vida em geral.

O pedágio chegou atrasado e diluído pela governadora Kathy Hochul, que baixou o preço de US$ 15 para US$ 9 por dia, entre 9h e 21h, nas vias do perímetro abaixo da rua 60, com exceção das duas avenidas marginais nos lados leste e oeste da ilha.

O começo da cobrança foi marcado por temperaturas geladas, e é cedo para avaliar o efeito sobre engarrafamentos e a qualidade de ar em Manhattan. Mas o fato de que o pedágio entrou em vigor tem implicações além desta região metropolitana de 20 milhões de habitantes, na república cuja fundação foi inspirada, no século 18, na revolta contra os excessos de tributação da coroa britânica.

A pouco mais de uma semana da posse de Donald Trump, depois de uma eleição em que Nova York registrou uma guinada à direita, o pedágio pode simbolizar a capacidade do Partido Democrata de implementar políticas cuja sensatez a maioria não bolsonarista da população do planeta não questiona mais.

O combate à mudança climática enfrenta mais desafios narrativos nos EUA do que em qualquer outra democracia próspera. Bilionários ligados à indústria de combustíveis fósseis implementaram décadas de estruturas negacionistas, financiando pesquisas fraudulentas e comprando políticos.

Notando que US$ 9 é uma fração do custo imposto por motoristas ao resto dos nova-iorquinos, o vencedor do Nobel de Economia Paul Krugman comparou combater o pedágio a depositar o lixo no terreno de um vizinho por discordar do preço da coleta.

O automóvel não foi inventado pelos americanos, mas o começo da sua produção em massa, há 117 anos, alimentou a ideia do individualismo como aspiração democrática. Para o pedágio urbano ter sucesso, é preciso revisitar este mito.

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