Não permita, doutor, que a turba,
Me convoque pra falar;
Sem que ateste os tremores
Que eu encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as câmeras de segurança,
Onde a Jiripoca vai piar
Foi com esses versos que Gonçalves Dias entrou no consultório do médico Simão Bacamarte na tarde da última quarta-feira.
A situação era extenuante. Gonçalves Dias havia sido flagrado pelas câmeras de segurança oferecendo água, alpiste e gorjeios aos canários que invadiram o Palácio do Planalto em 8 de janeiro passado.
"É o caso de exílio", diagnosticou o médico. E prescreveu:
Para as asas que aqui bambeiam,
Para o bico a salivar,
Para as frestas que te arreiam,
Tome Emplastro Sabiá
Após cismar sozinho à tarde, Simão Bacamarte se deixou tomar pelos arroubos poéticos e redigiu um dos mais belos e concisos atestados médicos da medicina literária brasileira.
"Atesto para fins de apresentação junto à Câmara dos Deputados que o Sr. Ministro Marco Edson Gonçalves Dias foi atendido pelo Serviço Médico da Coordenação de Saúde às 13 horas do dia 19/04/2023, com quadro clínico agudo e necessidade de medicação e observação, impossibilitado, pois, de comparecer a compromissos por motivo de saúde na presente data".
Sem desrespeitar o estado de saúde de Gonçalves Dias, um grupo se debruçou sobre a grandeza literária do texto. O uso da expressão "quadro clínico agudo" comoveu poetas, críticos, escritores, filósofos e outras almas sensíveis.
"É um verso com a sonoridade de um Rimbaud e a métrica de um Homero", elogiou a consagrada editora Maria Emilia Bender. "É um poder de síntese fabuloso. São apenas três palavras que definem a condição da alma humana", explicou, aos prantos, o escritor Sérgio Rodrigues. Lilia Schwarcz estava abismada: "Toda ancestralidade poética brasileira encadeada em camadas de compreensão sofisticadíssimas". "Uma farofa de lucidez que revela de forma aguda a subjetividade lacônica —lacânica, talvez?— da matriz pulsional que nos faz a todos", analisou Maria Homem.
O debate tomou forma no solilóquio "Atestado Médico: simulacro de cura para o corpo ou para a alma?", que lotou o auditório da Festa Literária do Hospital das Clínicas. Estudiosos já consideram um lugar para Simão Bacamarte na Academia Brasileira de Letras e, para Gonçalves Dias, na próxima convocação da Comissão.
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