O ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) André Mendonça derrubou, em decisão liminar, trecho do edital de licenciamento de bets da Loterj (Loteria do Estado do Rio de Janeiro) que indicava que os sites com permissão do estado poderiam atuar em todo território nacional.
A Loterj e o governo fluminense devem cumprir a decisão no prazo de cinco dias contados a partir desta quinta-feira (2).
Empresas barradas pelo Ministério da Fazenda em lista divulgada na última terça-feira (31) continuaram a operar em todo o país, sob o argumento de ter a permissão da Loterj.
É o caso, por exemplo, da Esportes da Sorte, que patrocina Corinthians, Grêmio e Bahia, além de ser conhecida pela parceria publicitária com a influenciadora Deolane Bezerra.
"O Grupo Esportes da Sorte informa que está apto a operar em todo território nacional e reforça que sua operação foi confirmada e validada pela Loterj para funcionamento por um prazo de cinco anos", disse a empresa em nota enviada para a Folha na terça.
"Em paralelo, a empresa pleiteou a licença da Fazenda, após o cumprimento de todo rito legal e normativo estabelecido pela legislação e suas respectivas portarias, e aguarda o seu deferimento, certa de que todas as etapas regulatórias foram rigorosamente cumpridas", acrescentou a empresa, que pode recorrer à negativa da Secretaria de Prêmios e Apostas.
Estão na mesma situação a Vai de Bet, ex-patrocinadora do Corinthians que tem como garoto propaganda o sertanejo Gusttavo Lima, a PixBet, que patrocina o Flamengo, a Rio Jogos e a Major Sports.
Procurados por reportagem da Folha, as empresas afirmaram estar em conformidade com as exigências dos reguladores federal e fluminense. Elas também podem recorrer contra a decisão da Fazenda de barrá-las.
A Fazenda afirma que as empresas ausentes da lista atual não cumpriram os requisitos da pasta ou perderam prazos e tiveram seus processos arquivados. Por isso, "houve o indeferimento". O ministério acrescenta que não comenta casos individuais.
A Advocacia-Geral da União afirma, nos autos, que o documento fluminense desrespeita um trecho da lei que regula as apostas online. A legislação federal indica que os órgãos estaduais devem manter um sistema de georreferenciamento dos pagamentos que permitiria restringir a atuação das bets licenciadas nos estados aos seus respectivos territórios, além de facilitar a investigação de lavagem de dinheiro.
"A retificação do Edital nº 01/2023, ao dispensar o uso de sistemas de geolocalização, viola o art. 35-A da Lei nº 13.756, de 2018, com a redação dada pela Lei nº 14.790, de 2023, ao permitir uma 'ficção jurídica' de territorialidade que favorece a exploração interestadual desse serviço público pelo estado do Rio de Janeiro, em detrimento da competência da União e de outros estados."
Em nota, a Loterj diz que lamenta a decisão do STF. "Ao estabelecer as regras para tal atividade, utilizamos como parâmetro o art. 3º da lei complementar 116 de 2003, que considera o serviço prestado no domicílio do prestador do serviço, dando o mesmo tratamento jurídico-tributário aplicado ao ecommerce", afirma. Nesse caso, a fatura é cobrada no endereço da empresa, que deve estar sediada no Rio de Janeiro (assim, seria desnecessária à geolocalização).
A loteria fluminense acrescenta que sua atuação, ao regulamentar o setor de apostas esportivas em seu território, "foi uma resposta necessária e legítima à inação da própria União, que deixou transcorrer o prazo estabelecido na lei nº 13.756 de 2018 sem a devida regulamentação federal". Esse direito estaria garantido, segundo a Loterj, pela legislação federal de 2023.
Para o advogado especialista em jogos e sócio do escritório Tozzini Freire, Caio Loureiro, no entanto, a ação da Loterj contrariava a determinação anterior da corte e colocava em risco a regulação da União. "A decisão esclarece o que o próprio Supremo já havia decidido ao quebrar o monopólio da União: os Estados podem prestar ou autorizar a prestação, mas restritos aos seus respectivos territórios."
Além de invalidar o ato administrativo fluminense, o ministro determinou ainda que a Loterj e o governo do Rio se abstenham de formular meios de que a permissão fluminense tenha validade nacional.
A AGU afirmou que só vai se pronunciar sobre o assunto nos autos do processo. Nos documentos, o órgão cita um risco de competição predatória entre os entes federados para receber os sites de apostas, caso a União perca no imbróglio contra a estatal fluminense. Nesse cenário, os atores teriam incentivos para aprovar leis e portarias mais lenientes com crimes financeiros para atrair casas de aposta.
A estatal carioca, por exemplo, não requer certidões de "nada consta" de todos os envolvidos na rede societária dos sites de apostas.
O governo, por sua vez, exige documentações de todas as pessoas ligadas às empresas controladoras e controladas pelo CNPJ que deseja receber a outorga. Pede ainda um plano de negócios detalhado, com projeções financeiras e demonstrações contábeis específicas.
Em evento organizado pelo grupo Lide, de João Doria, em outubro, Cançado, afirmou que a Loterj já recebe pedidos de licença de empresas de vários estados e até do exterior. Por isso, vai lutar para garantir que as licenciadas atendam jogadores de todo o país, faturando as apostas no Rio de Janeiro.
Segundo a Loterj, "a eventual invalidação dos atos jurídicos que credenciou as empresas implicaria em indenizações milionárias e perda de arrecadação tributária significativa para a própria União".
Para a entidade representativa de bets IBJR (Instituto Brasileiro de Jogo Responsável), "o modelo estadual, como o da Loterj, carece de mecanismos adequados de fiscalização e compliance, criando desafios regulatórios, competição desleal e riscos reputacionais para o setor.
"A União estabelece limites financeiros para apostas, obrigatoriedade de campanhas educativas e monitoramento de comportamentos que apontem para compulsividade, fraudes e ilegalidades, o que deve estar detalhado em um reporte diário ao Ministério da Fazenda", diz a entidade. Além disso, a outorga nacional custa R$ 30 milhões, enquanto a da Loterj sai por pouco mais de R$ 5 milhões.
VEJA PRINCIPAIS DIFERENÇAS ENTRE REGRAS DA UNIÃO E DO RIO
Histórico criminal dos sócios:
- Fazenda exige entrega de declarações de "nada consta" de tribunais estaduais e federais, entre outros documentos, de toda a cadeia de sócios e acionistas do negócio até o beneficiário final
- Loterj exige entrega de documentos apenas dos sócios da empresa licitante. Não fica claro também se pessoas que entrarem no quadro societário após a outorga precisam prestar contas ao regulador
Regras para compra e venda de empresa licenciada:
- A Fazenda elenca regras para fiscalizar a venda de um CNPJ licenciado pela SPA. Por isso, a transação deve ocorrer sob supervisão da pasta
- A Loterj não detalha regras para repasse de propriedade de empresas licenciadas. A Vai de Bet, por exemplo, conseguiu uma licença comprando uma pessoa jurídica já habilitada
Protocolos contra lavagem de dinheiro:
- A SPA se inspirou na circular nº 3.978 do Banco Central para elencar regras contra lavagem de dinheiro. Além disso, requer a entrega de um relatório anual de adequação
- A Loterj pede adequação à circular nº 3.978 do Banco Central
Regras contra compulsividade e superendividamento:
- A SPA tem uma portaria sobre jogo responsável, como as empresas do setor chamam as práticas contra o vício e a publicidade abusiva nas apostas. Entre as regras estão o direito de autoexclusão, determinação de tempo máximo de jogo e normas para propaganda
- A Loterj requer políticas de jogo responsável nos moldes dos padrões internacionais determinados pela World Lottery Association (WLA) ou "entidades similares"
Idoneidade do jogo:
- A Fazenda cobra a entrega de certificação de que os jogos ou a plataforma da bet estejam livres de fraude e entreguem informações suficientes para o jogador. Essa perícia é feita por uma das seis empresas independentes autorizadas pela SPA
- A própria Loterj faz uma prova de conceito para verificar se o sistema online de apostas da licitante atende a todas as exigências do edital
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