Descrição de chapéu Entrevista da 2ª

Esquerda vai precisar de sua versão de populismo para enfrentar Trump, diz Nancy Fraser

Para filósofa e professora da New School, republicano não conseguirá cumprir promessa de melhorar vida da classe trabalhadora, o que deveria ser foco de uma eventual aliança democrata

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Kalil de Oliveira
Florianópolis

A vitória de Donald Trump não representa a consolidação da extrema direita, mas explicita um vácuo na hegemonia política, diz a filósofa Nancy Fraser, 77. À Folha ela argumenta que a derrota de Kamala Harris é consequência da marginalização da ala esquerdista do Partido Democrata e da inaptidão do governo de Joe Biden em gerenciar conflitos internacionais.

Para Fraser, o próximo presidente não cumprirá o que prometeu na campanha, o que pode ocasionar desgaste no trumpismo. Em entrevista por videoconferência, a professora da universidade The New School for Social Research, em Nova York, defende que a esquerda deve desenvolver um discurso populista.

Mulher branca de cabelos grisalhos e blusa azul sorrindo para a câmera
A filósofa americana Nancy Fraser - Marvin Ester/Divulgação

Em "O Velho Está Morrendo e o Novo Não Pode Nascer", a senhora diz que a crise americana em 2016 era de hegemonia. Em 2024, com o retorno de Trump, pode-se dizer que se consolidou uma hegemonia de ultradireita?
A situação em 2024 é diferente da de 2016. A crise social avançou no mundo. Isso é perceptível na intensificação dos efeitos das mudanças climáticas e da crise do trabalho, com empregos que não pagam o suficiente para sobreviver.

E, claro, há o dramático aumento da incapacidade de governar [de Joe Biden], que se dá, em parte, porque as soluções para os problemas são inalcançáveis. Além disso, existem ataques às instituições democráticas. No Brasil, vocês passaram por isso. [Jair] Bolsonaro e Trump são muito próximos.

Nas últimas três eleições americanas, havia, basicamente, duas opções: o neoliberalismo progressista, representado por pessoas como Kamala Harris, e o pseudopopulismo. Ela [Kamala] nunca demonstrou compreender as dificuldades econômicas das pessoas, apesar da retórica ocasional. Tudo soava roteirizado e falso, o que ecoa Hillary Clinton em 2016. Pode-se dizer que Biden foi um pouco melhor porque, em 2020, valeu-se de parte da linguagem de Bernie Sanders.

Mesmo assim, estou cética de que essa vitória representa a consolidação do populismo autoritário de Trump e do movimento Maga [sigla em inglês de "faça a América grandiosa novamente", o slogan de Trump]. O país está em grande tumulto, com muita volatilidade. Um segmento da base de Trump permanecerá leal a ele até o fim, mas é uma parte insuficiente para garantir uma hegemonia segura. O que me parece mais provável é que Trump, na prática, não atenderá às expectativas de muitos de seus eleitores.

Mesmo assim, o Partido Democrata está desorganizado. Nem sequer está claro se ele sobreviverá. Em cada uma das três últimas eleições, os democratas marginalizaram a ala esquerda do partido. Não acredito que exista alguma hegemonia segura no horizonte da política doméstica dos EUA.

Qual a dimensão geopolítica dessa crise?
A crise está profundamente ligada à fragilidade dos EUA como potência hegemônica global. Ao longo dos últimos 50 anos, o país enfrentou um desastre após o outro, desde o Vietnã, passando pelo Afeganistão até a Guerra do Iraque.

No entanto, algo mudou agora, que é a incapacidade de derrotar a Rússia na Ucrânia. Isso [vencer Moscou] não vai acontecer. Putin conseguiu montar um bloco muito poderoso de oposição. O principal eixo é o Brics, no qual está a China, mais a Turquia.

Os EUA perderam credibilidade. Sua política para o Oriente Médio é um desastre moral e político. Caso Israel "consiga limpar" a Faixa de Gaza e a Cisjordânia de palestinos, os EUA se tornarão um pária moral no cenário internacional. A capacidade de liderança americana está gravemente enfraquecida. Existe, portanto, um vácuo hegemônico, ou pelo menos uma incerteza. Enquanto isso, a Europa está completamente paralisada.

Será interessante observar como Trump lidará com a China, que representa a verdadeira disputa geopolítica dos EUA. É possível que estejamos à beira de uma guerra comercial global, semelhante àquela que precipitou a Grande Depressão no início do século 20.

A senhora disse que Trump não fará o que prometeu ao longo da campanha. O governo será mais ou menos radical?
O que quis dizer é que ele não fará nada para melhorar o padrão e a qualidade de vida de seus apoiadores da classe trabalhadora e da classe média baixa. Ele não aumentará o salário mínimo nem criará empregos de qualidade. Pelo contrário, provavelmente reverterá alguns avanços recentes que fortaleceram sindicatos.

Sobre fechar fronteiras ou deportar pessoas, é difícil imaginar como ele conseguiria fazer isso com 11 milhões de pessoas, colocá-las em campos de concentração e deportá-las sem provocar algum tipo de guerra civil. No entanto, ele pode deportar um número significativo de pessoas sem documento, talvez focando aquelas com antecedentes criminais. E pode construir parte do muro.

Ele pode negociar o fim da guerra entre Ucrânia e Rússia, o que seria uma coisa muito boa, um grande avanço em relação à política atual. Por outro lado, será pior na questão Israel-Palestina. É difícil dizer o quão pior seria uma vez que Biden já é [ruim]. Ele também pode retirar os EUA da Otan [aliança militar ocidental liderada por Washington], e não tenho certeza se isso seria uma coisa ruim. Nem sei por que a Otan ainda existe.

Para alguns analistas, Kamala perdeu a eleição por causa do identitarismo. O que a senhora pensa?
Kamala não focou políticas de identidade. Ela não enfatizou seu gênero ou sua origem étnica —isso veio de Trump. Por outro lado, Trump, sim, fez discurso identitário sobre pessoas trans. Nas redes sociais dele, parecia que esse era o assunto mais urgente do país.

Questões como direito ao aborto e liberdade reprodutiva, que foram partes importantes da campanha de Kamala, não se enquadram como identitarismo. São pautas materiais. Sempre lamentei o identitarismo dentro dos movimentos sociais e antirracistas, especialmente quando se negligencia a economia política. Esse desequilíbrio deu munição para o lado de Trump, e eles usaram isso.

Como a esquerda pode preencher o que a senhora chama de "vácuo de hegemonia"?
Num país como os EUA, a melhor chance de sucesso é criar uma força que articule feministas, ambientalistas, ativistas antirracistas e LGBTQIA+ que foram capturados pela ala Clinton-Obama-Biden do Partido Democrata, mas que poderiam ser convencidos a apoiar uma terceira via, a qual vamos chamar de "opção Sanders".

Acredito que também seja possível atrair parte dos eleitores de Trump. E digo que, se isso não for verdade, estamos perdidos. Então, precisamos acreditar que alguns deles, o suficiente, vão se sentir decepcionados e estarão abertos a uma alternativa.

Chamo isso de construir uma coalizão ampliada da classe trabalhadora, que inclui imigrantes, pessoas racializadas, trabalhadores do setor de serviços, empregadas domésticas e até donas de casa que realizam trabalho não remunerado.

É preciso mostrar como todas essas lutas estão conectadas. Essa é uma ideia que estou desenvolvendo em um livro no qual teorizo como o capitalismo depende dessa força de trabalho diferenciada.

Chantal Mouffe entende o populismo como um gênero discursivo que divide a sociedade entre povo e elite. Como a senhora define esses dois elementos?
Minha análise tem sobreposições com Chantal Mouffe, mas não totalmente. A diferença entre o populismo de esquerda e o de direita é muito importante. O populismo de esquerda tem esse mapa binário. Existem as elites e o povo, enquanto o populismo de direita tem um mapa tripartido: as elites sanguessugas, a subclasse sanguessuga, que "come nossos gatos e cachorros" ou são "mexicanos estupradores", e o povo virtuoso no meio. O Maga usa esse bode expiatório das minorias relativamente sem poder, que desvia a atenção de onde o verdadeiro poder está: o capital.

Nada disso é uma descrição sociológica precisa. Mas o populismo de esquerda é infinitamente melhor do que o populismo de direita. Quando o populismo de esquerda fala sobre Wall Street ou o Vale do Silício, discute as concentrações de poder econômico.


RAIO-X | NANCY FRASER, 77

Filósofa e professora da universidade The New School for Social Research, em Nova York. É autora de livros como "Capitalismo Canibal" (2023) e "O Velho Está Morrendo e o Novo Não Pode Nascer" (2019), que escreveu sob a perspectiva de teoria crítica. Seu pensamento foca as relações entre o capitalismo e racismo, sexismo e mudanças climáticas. Feminista, Fraser se posiciona no "socialista democrático". Nascida em 1947 em Baltimore, estudou na Bryn Mawr College e doutorou-se na City University of New York. Ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) embasaram suas decisões no trabalho dela, pelo menos, três vezes, em casos de casamento igualitário, ações afirmativas e direitos quilombolas.

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